quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

CNECV Sobre PMA …

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“Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas” (Is 5, 20).


1 – O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida elaborou um parecer, datado de Julho de 2004, sobre aquilo que ele intitula de Procriação Medicamente Assistida.

2 – Convirá, em primeiro lugar, assinalar que o parecer pronuncia-se sobre a procriação medicamente (ou tecnicamente) substituída (de facto, os pais, reduzidos a fornecedores de matéria prima, são substituídos pelos médicos ou técnicos na concepção de seus filhos) e não sobre a procriação medicamente assistida como seria o caso da NaPro Technology, que o documento, pura e simplesmente, ignora. Esta “técnica” que não substitui os pais, é natural, eticamente irrepreensível, respeitadora da vida e obtém muito melhores resultados que as que o CNECV advoga.

3 – …

Importa, pois, saber que i) as técnicas de fecundação extra-corpórea que são admitidas como eticamente lícitas pelo CNECV implicam necessariamente a programação da morte de seres humanos na sua fase embrionária. De facto, são “produzidos” vários embriões humanos para garantir a possibilidade de sucesso. Estas técnicas exigem, por ciclo, pelo menos a transferência de três seres humanos, na sua fase embrionária, para o útero, sendo que se perdem (morrem) dois em 70% dos casos em que se dá a gravidez enquanto todos se perdem nos outros 80% de casos em que não se alcança a mesma. Acresce que a crio conservação de uma imensidade de pessoas humanas, na fase inicial da sua existência, destina-as, na prática, a morte certa quer por resolução da lei, quer porque entregues à experimentação, quer pelos próprios processos de congelação e descongelação (a possibilidade de êxito em caso de adopção pré-natal é diminuta, pelo que o número de vidas que poderá salvar é ínfimo). Segundo estatísticas recentes calcula-se que de mil e oitocentas pessoas humanas “produzidas” artificialmente somente vinte nascerão: de 100 mulheres que queiram um filho, recorrendo a este número de embriões, como mínimo, somente 20 o alcançarão. Temos pois que para virem à luz essas vinte pessoas se programa a morte de mil setecentas e oitenta. A proposta, que alguns adiantam, de transferência de um único embrião humano, na fase de blastocisto, para o seio da mãe não resolve o problema, uma vez que a “produção” de mais seres humanos embrionários permanecerá sempre uma exigência técnica (Cf Angelo Serra, S. I.,L’uomo-embrione – il grande misconosciuto, pp. 147, ed. Cantagalli, Marzo 2003, pp. 69, 71). Todos os profissionais de saúde envolvidos no processo - e os legisladores que o autorizam - (talvez os casais o desconheçam) estão conscientes de que irão colocar uma multidão inumerável de pessoas em circunstâncias que as conduzirão à morte certa, embora esperem que alguma se safe. Não se trata aqui, de maneira nenhuma, de um processo natural, como o que resulta da fecundação originada no acto conjugal, mas sim da actuação deliberada de um poder técnico e artificial. O facto de morrerem muitas pessoas acidentalmente numa avalanche, por exemplo, não autoriza ninguém a colocar outras em circunstâncias de morte certa, deliberadamente produzidas. Nunca é lícito reproduzir voluntariamente um facto natural negativo: se a natureza causa desastres importa corrigi-la, não imitá-la (Cf Antonio G. Spagnolo, «Fecundacion Artificial e Inicio de la Vida Humana», in Comentario Interdisciplinar a la “Evangelium Vitae”, pp. 811, Madrid, BAC, 1996, pp. 607-608). Por isso, não faz sentido nenhum a comparação com as mortes acidentais dos embriões humanos, que podem resultar da união conjugal. De facto, estas são padecidas e, no estado actual da ciência, pouco se pode fazer (mas o que já se pode deve fazer-se) para as evitar, enquanto que as outras são queridas – uma vez que são absolutamente previsíveis e termo de uma eleição livre - como meio e condição (pelo menos) para alcançar o fim procurado (Cf Idem, p. 607 e Dionigi Tettamanzi (Cardeal de Milão), Nuova Bioetica Cristiana, pp. 653, Piemme, II Edizione, dicembre 2000, p 219). No primeiro caso está-se diante de um acidente, no segundo perante a programação consciente de uma catástrofe.

ii) o parecer admite (nem na lógica que assume poderia deixar de fazê-lo, uma vez que o recurso a estas técnicas é incapaz de obstar aos chamados “embriões excedentários”, isto é, seres humanos excedentários! Mesmo no caso meramente hipotético, porque fantástico, de se “produzir” um só embrião para implantação há sempre imprevistos e imponderáveis, por exemplo, a morte da mãe ou a sua recusa por litigância ou divórcio do pai, etc.) o parecer admite, escrevia, a criopreservação, a saber, a congelação de pessoas humanas, a sua suspensão no horror infernal de “campos de concentração” glaciais, atentando assim gravemente não só contra a vida, como atrás referimos, mas também contra a dignidade, a temporalidade (dimensão constitutiva da pessoa) e, portanto, a identidade, e, também, a integridade e a saúde das mesmas.

iii) o documento coonesta, ainda, a morte propositada de seres humanos, nossos irmãos, de outras três formas: através do diagnóstico pré-implantação (DIP) que se destina a seleccionar as pessoas humanas, na sua fase embrionária, e a desfazer-se das que padecem de “doenças graves de origem genética ou outra”; e através da investigação e experimentação científicas nas pessoas que apelida de inviáveis e naquelas que, tendo sobrevivido à crio preservação, não forem adoptadas (chamar a isto, como alguns, “antecipação da morte inevitável” não passa de farelório, de uma tentativa de manipular a realidade através de palavras ilusionistas, de um tipo de racionalização ideologicamente afim ao nazismo, que justifica a experimentação em todos os seres humanos, em qualquer fase da sua existência, já que todos inevitavelmente morreremos). Temos assim que o ser humano é coisificado e reduzido a um instrumento para possíveis benefícios de outros. Estamos perante um novo despoletar das opressoras pulsões da escravatura e do eugenismo levadas a um radicalismo extremista.

iv) inumeráveis estudos indicam que os próprios processos de procriação artificial provocam deficiências ou distúrbios físicos, neurológicos, genitais, oculares e psicológicos numa porção nada negligenciável dos filhos assim gerados. De modo que, não só não se reconhece o filho como um dom antes se o coisifica reivindicando-o como um direito, mas também se manifesta um frio desprezo e indiferença por tudo o que ele venha a sofrer, expondo-o aos perigos vários dos meios utilizados na sua concepção, desadorando e ojerizando os seus direitos.

v) o filho que deveria (pois é verdadeiramente sujeito desse direito) ser procriado pelo acto conjugal de entrega mútua de seus pais, sinal, expressão e realização do amor corpóreo/espiritual dos dois na doação total e recíproca, não do que têm, mas de si, das suas pessoas, é submetido, subjugado, ao poder dos técnicos, manipuladores da sua vida e da sua identidade. A sua dignidade é repulsa e menosprezada nessa redução de pessoa a objecto, de fim a meio, de valor em si e por si a instrumento. Já o Papa Pio XII sublinhava o procriar como um facto indissociavelmente biológico-afectivo-espiritual: “O filho é o fruto da união conjugal, para cuja plenitude concorrem as funções orgânicas, e as emoções sensíveis a elas conexas, o amor espiritual e desinteressado que a anima; na unidade deste acto (sublinhado meu) devem-se inserir as condições biológicas da geração. ... Nunca é permitido separar estes diversos aspectos de modo a excluir positivamente quer o propósito da procriação, quer a relação conjugal. A relação que une o pai e a mãe ao filho afunda as suas raízes no facto orgânico e mais ainda no gesto deliberado dos esposos de se darem reciprocamente e cuja vontade de doação mútua se abre e encontra a sua verdadeira realização no ser que põem no mundo” (Pio XII, Sterilità coniugale e inseminazione artificiale, in P. Verspieren, Biologia, medicina ed etica. Testi del Magistero cattolico, Brescia 1990, p. 53). Como escreveu Blondel: “dois seres não são mais do que um, e é quando eles são um que se tornam três” (M. Blondel, L’ Action (redacção de 1936.), Paris 1949, vol. II, p. 264). Continua Pio XII: “A fecundação artificial ultrapassa os limites do direito adquirido pelos esposos em virtude do contrato matrimonial, quer dizer, o de exercitar plenamente a sua capacidade sexual natural na realização natural do acto matrimonial. Tal contrato não lhes confere o direito à fecundação artificial, uma vez que um tal direito não está de modo nenhum expresso no direito ao acto conjugal natural nem dele pode ser deduzido. Tão pouco se pode fazer derivá-lo do direito «prole», «fim» primário do matrimónio. O contracto matrimonial não concede este direito, porque esse não tem por objecto a «prole», mas os «actos naturais» capazes de gerar uma nova vida e a este fim ordenados”. (Pio XII, Sterilità coniugale e inseminazione artificiale, in P. Verspieren, op. cit., p. 54). Escusado será dizer que esta doutrina foi confirmada e desenvolvida por João XXIII, Concílio Vaticano II, Paulo VI e João Paulo II (ver em especial Donum Vitae e Evangelium Vitae)[e, já depois do artigo escrito, Papa Bento XVI e Dignitas Personae].

vi) os “parceiros”, muito em especial as mulheres, são submetidos a uma violência invasiva brutal, que tem provocado, quer neles quer nelas, embora mais severamente nelas, depressões e nas mulheres outros distúrbios de saúde, principalmente, por causa das doses enormes de hormonas. Ora, ao Estado, e por maioria de razão ao pessoal médico, compete também velar para que a saúde dos cidadãos não seja posta em perigo, mas antes seja resguardada e promovida. Repare-se que não se trata de efeitos secundários de um tratamento, que se poderiam aceitar tendo em conta a proporcionalidade dos benefícios para melhorar a saúde do próprio, pois quem é estéril ou infértil continuará a sê-lo.

vii) ao aceitar que as uniões de facto heterossexuais possam recorrer a estas técnicas equiparam-nas, de facto, ao casamento, único lugar digno e são da procriação e educação dos filhos, minando assim os fundamentos da sociedade.

viii) a fecundação heteróloga, para além de constituir uma intrusão inqualificável na unidade exclusiva do casal possibilitando o “bio-adultério” e o “incesto genético”, e coisificar adrede o filho, manifesta, com um relevo mais saliente, aquilo que subjaz a todo o documento, a saber, uma concepção dualista do ser humano que é visto não como uma totalidade unificada, como uma união substancial, mas como um encaixe acidental de um corpo não pessoal com uma pessoa não corporal! Tal dualismo é não só absurdo como é essencialmente exicial.

4 – …

5 – Seja como for, importa agora saber se será moralmente lícito a um político, em especial se é católico, votar favoravelmente ou apoiar uma lei que tenha por base este parecer solerte e tredo.

Para perfeita inteligência da resposta monta muito saber que, actualmente, nesta questão a lei portuguesa tudo permite - não só as barbaridades horrendas que este parecer dá por boas ou eticamente lícitas, mas também todas as demais crueldades e selvajarias, que são infindáveis. Por isso, se for absolutamente impossível uma lei que exclua todas estas temerosas atrocidades ou que pelo menos seja mais restritiva do que aquilo que vem no parecer do CNECV e desde que o político manifeste publicamente, com a máxima clareza, a sua total discordância e oposição ao mal que tal lei admite tem o dever de aprová-la, uma vez que é o único meio de que dispõe para poder limitar a sinistra ruindade existente. Significa isto que o objecto da sua escolha moral não é aquilo que tal lei permite, mas sim aquilo que ela coíbe e enfreia. No entanto, como não se trata de uma lei imperfeita, mas realmente injusta e iníqua (por aquilo que autoriza) essa “lei” não é tal, senão que é uma violência, uma voragem, à qual todo o político, mesmo o que a apoiou e votou (supostas as razões apontadas), em especial se é católico, tem o dever grave de se opor empenhando-se com denodo e determinação para que, sem tir-te nem guar-te, seja revogada e substituída por uma verdadeira (cf. João Paulo II, Evangelium Vitae, n.º 73).

6 – Mas, perguntar-se-á, como é possível que um país maioritariamente católico possa parir um parecer e uma “lei” tão medonhamente monstruosos? Julgo que quem tem lido os meus artigos terá parte da resposta. A essa porção podemos ajuntar as seguintes: i) a inexistência, segundo me garantem, ao longo destas décadas, de qualquer documento da Conferência Episcopal Portuguesa sobre o assunto; a ausência de um esclarecimento, de um alerta, de uma orientação... e ii) a cobertura, noticiada pelos media, que alguns senhores bispos, a UCP e a comunicação social católica têm dado às flatulentas personalidades túrgidas de filáucia, chichisbéus do mundo, que, azoratados, sistematicamente discrepam com alarde da verdade ensinada pela Igreja.

Um país onde os mais inocentes e vulneráveis de entre todos não têm báculo que os ampare nem valhacoito que os proteja não merece o nome de cristão nem sequer de humano. Este sinal, tão evidente, dos tempos diz do quilate da nossa evangelização, ou da falta dela.

Nuno Serras Pereira
02. 08. 2004