Ninguém emenda um erro que não reconhece. Quem acha que tudo vai bem só corrige o mal demasiado tarde. A recente crise financeira mostra muitos casos destes. Em Portugal, onde vários sectores se reconhecem em graves dificuldades, há um que se julga em sucesso. Por isso é esse que tem realmente problemas graves. Não por serem grandes, mas por não serem assumidos.
Hoje o jornalismo reina soberano. Faz e desfaz poderes, promove e derruba personalidades, decreta juízos, recebe vassalagem de todos os interesses. Para um sector que ainda há anos passou por turbulências sérias, dificilmente se imaginaria situação mais vantajosa. Precisamente por isso, o jornalismo português vive um dos momentos mais perigosos da sua história.
A nossa imprensa traz pouca informação. Muita análise, intriga, provocação, boato, emoção, combate, mas pouca informação. O público não quer jornalismo, quer entretenimento. Para ter sucesso o repórter precisa de ter graça, ser espirituoso, ver o aspecto insólito. Assume uma atitude de suposta cumplicidade com o leitor, ouvinte ou espectador desmontando para gáudio mútuo o ridículo que achou que devia reportar. Antecipa no relato o que assume ser o veredicto popular, condenando ou absolvendo aqueles que devia apenas retratar.
Assiste-se a uma verdadeira caça ao deslize, empolado até à hilaridade. Só triunfa se apanhar desprevenido e atrapalhar o entrevistado. Enquanto descreve o que vê quase às gargalhadas, não se dá conta da perda de dignidade profissional. Tem sucesso, mas não rigor. Quem segue a notícia fica com a sensação de ouvir aquele que, dos presentes, menos entendeu o que se passou no acontecimento.
Aliás, relatar o sucedido é o que menos interessa. O jornalista vai ao evento para impor a agenda mediática que levou da sede. A inauguração de um projecto revolucionário, por exemplo, só importa pela oportunidade de fazer a pergunta incómoda ao governante sobre o escândalo do momento. Investimentos de milhões, trabalho de multidões, avanços e benefícios notáveis são detalhes omitidos pela intriga picante que obceca o periódico.
É significativo que existam em Portugal muitos analistas famosos e respeitados, mas poucos jornalistas reputados pelo facto de serem jornalistas. Os directores de informação costumam ser também colunistas. As referências da classe são comentadores. Parece que informação e reportagem é actividade menor.
O mais curioso é que, embora a imprensa escrita e falada seja intensamente opinativa, nunca se assume em termos políticos. Não existe em Portugal o alinhamento ideológico explícito de jornais e emissoras de referência que existe em todos os países. O público não é informado da orientação do meio que escolheu, porque todos dizem apenas a verdade. Todos os repórteres têm opinião, mas todos são isentos de orientações e partidarismos. Os resultados são caricatos.
O actual Governo goza de clara benevolência jornalística. Apesar da contestação e inevitáveis "gafes", o tratamento não se compara com o dos antecessores. Por outro lado a imprensa já decidiu que Manuela Ferreira Leite não tem hipóteses. Não interessa o que pensa ou propõe, apenas que não sabe lidar com os media, o pecado supremo.
Suspeita-se de campanhas organizadas, mas talvez não seja manipulação política, até porque o PS já sofreu o mesmo tratamento. A regra da imprensa é que "mais vale cair em graça que ser engraçado". O Bloco de Esquerda é sempre fresco e interessante, por muitos chavões bafientos que repita, enquanto PCP e PP são desprezados, por vezes sem disfarce. A culpa disto é em boa medida dos sujeitos, mas os mensageiros não são neutros.
Existe muita gente honesta e bem-intencionada no jornalismo. Mas é evidente (e paradoxal) que a imprensa tem hoje uma má imagem. Também é verdade que existe uma falta de imprensa verdadeira, objectiva, respeitada, idónea. Muitos dos que relatam o jogo participam nas equipas. Quando o jogo se suja, avolumam-se as suspeitas. Isto ainda não afecta o poder da imprensa, mas já degrada a classe.
João César das Neves
Diário de Notícias - 01. 12. 2008