O livro do Êxodo, especialmente meditado na Quaresma, narra-nos como Deus Se revelou a Moisés, a missão que lhe confiou de libertar o povo escravizado no Egipto, as resistências do Faraó a essa pretensão, os prodígios e sinais que Deus operou por meio do Seu servo Moisés, a fuga do povo Judeu depois da praga mais temível, a travessia do Mar Vermelho, a peregrinação de 40 anos, no deserto, a caminho da terra prometida.
Graves autores antigos interpretam simbolicamente estes acontecimentos. Assim, a servidão no Egipto significa a escravidão do pecado, o Faraó significa o diabo, Moisés o sacerdote, a travessia do Mar Vermelho o baptismo, a terra prometida o Céu ao qual somos chamados, a peregrinação no deserto o tempo que nos é dado decorrer nesta vida.
No centro da estadia no deserto está a peregrinação ao monte Sinai. Aí Moisés faz um retiro de quarenta dias. Durante esse tempo de adoração, de escuta, de colóquio, Deus revela-lhe a Sua lei, os dez mandamentos. As consciências obscurecidas pelo pecado tinham-se tornado incapazes de ver com clareza e nitidez a lei inscrita por Deus Criador no coração de cada homem. Por isso, a Revelação vem em auxílio da natureza racional decaída. Deus revela, ainda, a Aliança que queria estabelecer com o Seu povo.
Moisés inundado de alegria, de rosto resplandecente, desce entusiasmado ao encontro do povo para lhe comunicar a vontade misericordiosa e salvífica de Deus. Perto do acampamento chega-lhe aos ouvidos um frenesim de vozes e de música dionisíaca. Em pouco tempo ganhou um alto que lhe permitiu uma visão geral da multidão. Esta, aglomerada à volta de um touro de ouro, fabricado a partir de pulseiras, anéis, cordões e arrecadas, prestava-lhe culto e adoração. Moisés, tomado de santa cólera, quebranta as tábuas da lei e ruge iras divinas. Aplicado o castigo, Moisés, em diálogo com Deus, intercede por aquele povo para o poupar ao extermínio. À letra, o profeta aparece como o manso que aplaca e convence Deus. Na realidade, porém, é o Deus suave e misericordioso que, através da oração, vai inspirando Moisés para que descubra a Sua bondade e o Seu perdão.
Referindo-se a este episódio, séculos mais tarde, o salmista dirá com muita amargura, mas também com grande ironia: “trocaram a glória de Deus vivo pela imagem de um boi que come feno”. Como é que é possível, perguntamo-nos hoje, tamanha cegueira que leve a trocar a glória de Deus vivo pela imagem de um touro que come palha!?
E, no entanto, talvez hoje suceda o mesmo...
Que poderá significar o touro de ouro?
O touro, para os povos antigos que desconheciam as energias e os artefactos mecânicos actuais, era o que de mais forte se conhecia. Quando aquele colosso musculado investia, levava tudo à frente, nada se lhe conseguia opor. Como o poder derivava da força, nela se apoiava e por ela se exercia, o touro surge como sinal desse mesmo poder. Por isso, o corno era o emblema dos mais poderosos.
O touro era, ainda, símbolo da sexualidade instintiva, da capacidade reprodutora, da virilidade poligâmica, desenvolvendo-se, por isso, à volta da sua imagem, os cultos da fertilidade e da prostituição sagrada. Sob este ponto de vista, surge, pois, como símbolo do prazer.
A circunstância de este touro, de que nos fala o Êxodo, ser fabricado em ouro, aponta-o claramente como símbolo da riqueza e, portanto, do ter.
Temos, pois, que a Sagrada Escritura nos apresenta, nesta interpretação, o povo prestando culto e adorando o poder, o ter e o prazer, na ilusão de que essa seria a verdadeira identidade de Deus.
Mas que mal vem ao mundo em prestar culto ao poder, ao ter e ao prazer? Não são realidades positivas? Não são, porventura, coisas boas? Não é bom o poder? Se não houvera poder não seria possível governar e desembocaríamos na anarquia, no caos. As forças da ordem incapazes de se impor, deixariam a sociedade nas mãos de meliantes, bandidos e outros safardanas. É bom poder falar, exprimir-se, comunicar. Que mal há, pois, no poder?; Não é bom o ter? Não é bom ter roupa para vestir, habitação para se abrigar, comida para se alimentar, livros para ler, artes para se cultivar? Que mal há, pois, em ter?; E quanto ao prazer? Não é também uma realidade querida por Deus? Não foi afinal Ele o seu inventor? É bom sentir prazer no comer - sem esse prazer, provavelmente, descuidaríamos a nutrição. Quanto prazer bom se experimenta ao olhar o azul do Céu imenso, o verde das montanhas escarpadas, ao ser envolvido pela carícia dos ventos fortes, em cheirar a maresia intensa, mergulhar nas límpidas águas cristalinas, escutar o rumor das ondas alterosas, sentir o calor do sol luminoso! Não é, porventura, bom o prazer que resulta da união conjugal entre marido e mulher? Que mal há, então, no prazer, no ter e no poder?
É que há um poder ordenado e um poder desordenado; há um ter ordenado e um ter desordenado; e há um prazer ordenado e um prazer desordenado. Poder-se-á dizer que estas realidades são desordenadas enquanto se constituem em fins últimos e são ordenadas enquanto meios para alcançar realidades outras e, ultimamente, Deus. Por exemplo, o prazer resultante do acto conjugal, de que ainda agora se falou, é um meio que está ao serviço da união do casal e da geração dos filhos. O prazer não é buscado por si mesmo, independentemente de tudo o mais, mas é integrado em e é o resultado da vivência de realidades maiores.
Numa caracterização rápida e sucinta pode-se afirmar o seguinte: o poder desordenado chama-se auto-suficiência, orgulho, tirania, manipulação, totalitarismo (individualismo, relativismo); o ter desordenado chama-se cobiça, avareza, possessividade (utilitarismo); o prazer desordenado, gula, embriaguez, toxicodependência, imoralidade, promiscuidade (hedonismo). O poder ordenado chama-se humildade, verdade, liberdade, serviço; o ter ordenado chama-se justiça, doação, partilha, entrega; o prazer ordenado, autodomínio, temperança, castidade.
A quaresma oferece-nos três sugestões para ordenar a vida. São elas a oração, o jejum e a esmola. Pela oração (obediência) combate-se o poder desordenado reconhecendo a Deus como o único Senhor e a nós como Seus administradores, servindo-O, também, na Sua imagem, que é todo o ser humano; pelo jejum (temperança/castidade), renunciando ao supérfluo, ou mesmo ao necessário, em ordem a alcançar um bem maior, peleja-se o prazer desordenado; pela esmola (pobreza), promovendo, com determinação firme e perseverante, a justiça, a solidariedade e a caridade, batalha-se o ter desordenado.
Temos, então, que Deus é a fonte do poder, do ter e do prazer ordenados e que o touro é o símbolo do poder, do ter e do prazer desordenados. Adorando o touro, identificavam-no, de um modo blasfemo, com Deus. Prestando culto a uma falsa imagem, pervertiam os seus corações, deixando-se moldar interiormente pelo ídolo que adoravam e acabando por identificar-se com ele. Abandonando o Deus vivo, deixavam a vida que Ele lhes comunicava e, seguindo um caminho letal, engendravam uma cultura de morte.
Porque ultimamente é de morte que se trata, pois é a ela que, inexoravelmente, conduzem o poder, o ter e o prazer desordenados, isto, é o touro.
Quando na praça de touros a arena se apresenta, em parte, escurecida pela sombra fria, em parte, batida pelo sol coruscante, anuncia-se o combate entre a luz e as trevas, entre o bem e o mal, entre a vida e a morte. Ao soar da trombeta irrompe o touro, negro como a morte, sólido, robusto, bravo, ameaçador, bufando fúrias raivosas, armado de dois rijos cornos pontiagudos, pronto a trespassar qualquer um com que se depare. Surpreendentemente, diante da morte, anunciada, próxima, iminente, alguém dança sossegadamente. Um bailarino de ademanes gentis e suaves meneia elegantemente uma capa vermelha numa das mãos e com a outra segura uma espada faiscante, reluzindo generosamente os brilhos solares. Quem é este misterioso dançarino que assim, temerariamente, se expõe à morte mais cruel? Quem é este que temendo-a, na sua singularidade, não a foge? Que é esta capa cor de sangue abundantemente derramado? Que é aquela espada agilmente volteada?
Quem assim dança é Deus. Aquele Deus, único e verdadeiro, de quem profetizou Sofonias: “ O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador ... Ele dançará por ti com gritos de júbilo ...”. Não se trata, tão só, de um antropomorfismo, mas sim do que aconteceu verdadeiramente, dum facto. Deus feito homem, Jesus Cristo, dançou realmente. Muito provavelmente dançou os salmos como era uso entre os judeus do Seu tempo, mas principalmente dançou ressuscitando. A ressurreição foi, através dos tempos, comparada, e, por vezes, pintada, com uma dança, não dionisíaca, mas, poderíamos dizer, apolínea, solar. Não é Ele afinal o Sol de Justiça? Alguns hermeneutas, especializados em iconografia, interpretam a posição de Cristo no Crucifixo de S. Damião, diante do qual S. Francisco de Assis rezou fervorosa e longamente, como o início de uma dança representativa da Sua ressurreição. Neste Cristo pintado, o rosto escurecido indica que passou pela morte, os olhos abertos dizem da Sua eternidade, o corpo luminoso, a vitória sobre a morte padecida, o muito ligeiro inclinar de ancas e a assimetria na posição dos pés – juntamente com a colocação dos braços e mãos que não apontam só para identidade do crucificado com o ressuscitado -, o começo da dança da ressurreição. A alegria jubilosa da morte vencida, do pecado aniquilado, da redenção triunfante exprimir-se-ia pela dança solene e sóbria. O nosso Deus revela-se como um Deus que exulta, que rejubila, que dança de alegria. De facto, em virtude da união teândrica, em Jesus Cristo, aquilo que se predica do homem predica-se de Deus e aquilo que se predica de Deus predica-se do homem.
A capa rubra significa a humanidade de Cristo e a espada “viva e eficaz”, como vem na carta aos hebreus, a Palavra eterna de Deus, o Verbo, ou seja, a Sua divindade: “ No princípio já existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus ... e o Verbo fez-Se homem e habitou entre nós”. A capa representa o Seu sangue derramado, a Sua humanidade que é morta pela investida, pelo marrar, da morte. O touro, que como vimos significa a morte, ao matar a humanidade de Jesus é morto pela espada, isto é, pela Sua divindade. Como reza o Prefácio Pascal: “[Cristo] morrendo destruiu a morte e ressuscitando restaurou a vida”.
Cristão é todo aquele que pelo baptismo foi incorporado em Cristo. A incorporação significa que o nosso eu foi enxertado no Eu de Jesus Cristo, que participamos da Sua vida, da Sua natureza divina. É nele, e só nele, que vencemos o pecado e a morte. Para nele permanecer e com Ele nos configurar-mos sempre mais, importa comungá-Lo na Eucaristia, pois esta “não faz mais do que transformar-nos naquele que recebemos”. O abeirar-se desta exige uma preparação adequada, operada pelo Espírito Santo, que reaviva em nós a graça do baptismo pelo sacramento da penitência e reconciliação.
Incorporados em Cristo, somos feitos um com Ele, toureando nele e com Ele a morte que vem pelo pecado. Este toureio operado pelo oração/escuta/obediência, pelo jejum/temperança/castidade e pela esmola/justiça/pobreza é, pois, unicamente possibilitado por esta união ou amizade com Cristo.
Cristo, prostrado por terra, sentiu pavor e suou sangue durante a Sua agonia no Jardim das Oliveiras. Ao assumir sobre Si todo o pecado e sofrimento da humanidade inteira, de todos os tempos, para passar para nós a Sua inocência e santidade, rezou ao Pai “se possível, afasta de Mim este Cálice; não se faça contudo como Eu quero, mas como Tu queres”. O Seu sim querido foi inteiramente sofrido : “Meu Deus, Meus Deus, porque Me abandonaste?”. A Sua dança vem depois. E é somente porque Ele agora dança em nós e por nós - quer dizer, é somente em virtude do poder da Sua ressurreição – que nos é dado dançar como o toureiro, na iminência da investida.
Nota Bene: nada neste texto autoriza uma conclusão acerca da posição do autor em relação às touradas e aos touros de morte.
Nuno Serras Pereira