Andamos nós a inventar novos meios de comunicar o esplendor da verdade, graças a Deus, mas esquecemo-nos de alguns que pela sua sublimidade são sempre actuais e dotados de uma eficácia singular.
1. Em casa de meus pais não existia o hábito de escutar música. A minha mãe, uma leitora voraz, não a apreciava e o meu pai embora gostasse muito da clássica, por amor do seu amor a ela renunciava. Claro que à medida que fomos crescendo “reivindicamos” o gira-discos e com ele veio a música própria daqueles tempos: o Johny Halliday, a Silvie Vartin, a Françoise Hardy, o Adamo, o Gilbert Becaud, o Charles Aznavour, etc; e apesar de o nosso pai ser deputado à Assembleia Nacional escutávamos também os discos proibidos do Zeca Afonso. Numa telefonia antiga ligávamos para a Renascença e para a Rádio Clube que passava aquilo que então considerávamos a boa música moderna.
Porém, os vizinhos do segundo andar tinham uma excelente aparelhagem sonora e televisão. Para além disso, os três filhos tinham um enorme jeito para a música. O pai, o famoso pintor Tomás Mateus, e a mãe, a Maria José, tratavam-nos como filhos e quando lá íamos sentíamo-nos com o mesmo à vontade, e às vezes maior, do que em nossa própria casa. Para mim eram da família. Como nós não tínhamos televisão (ela só entrou lá em casa andaria eu pelos dezoito, vinte anos, quando queríamos ver algum programa íamos à deles. Uma vez que eu era da mesma idade do mais novo, o Zé Eduardo, passava lá a vida. A primeira coisa que o Zé fazia quando entrávamos na sala era ligar a telefonia para a Antena 2. À conta disso habituei-me a ouvir sinfonias e concertos durante horas. Muitas vezes escutámos também óperas que de quando em vez passavam na televisão. Acresce que quando íamos para o quarto do João e do Zé, o Luís Manuel tinha um quarto só para ele, o Zé agarrava-se à viola e embrenhava-se tocando J. S. Bach, compositor por quem ele tinha uma predilecção particular. Tanto quanto recordo aos quinze anos já dedilhava com primor as pautas desse artista.
Como todos os três irmãos eram exímios em música com alguma frequência improvisavam concertos de câmara. Mais frequentemente, o João e o Zé com mais alguns amigos virtuosos como eles nessa arte. Foi nessa altura que nasceram os famosos, entre os achegados, concertos da casa de banho. De facto, verificando-se, por um lado, que a divisão com melhor acústica era precisamente o banheiro e, por outro, que nos improvisos se podiam introduzir sons imprevisíveis - tais como a descarga do autoclismo, a torneira do lavatório a correr, o chuveiro ligado, o batuque nas bordas da banheira, o desentupidor a funcionar, a repercussão no chão de mármore -, não se duvidou em assentar aí a “sala de gravação” desses musicais. Como eles só sabiam tocar instrumentos menores como violoncelo, violino, viola de arco, alaúde, flauta, etc., a mim cabia a alta tarefa de abrir o chuveiro, etc…
Entretanto, não sabemos porque milagre inesperado, a nossa mãe acedeu a comprar uma aparelhagem musical magnífica. Melhor que a dos vizinhos de cima! Foi a curiosidade e a inveja da vizinhança jovem de, pelo menos, três prédios! Começámos então a ouvir de um modo melhor os Beatles, Bob Dylan, Otis Redding, Janis Joplin, os Doors, Deep Purple, Jetro Tull, The Who, Crosby, Still, Nash and Young, Dan Mclean, Feliciano, James Taylor, Joan Baez, Judy Collins, Leornard Cohen, Santana, Bibi King, (não me esqueci dos Roling Stones, mas não gosto deles) etc.
O meu irmão Luís que tinha um jeito especial para música, coisa rara se não única lá em casa, gostava bastante de cantar Bob Dylan. Frequentemente ia para a varanda, que era num primeiro andar, munido de viola e gaita-de-beiços entoando aquelas baladas que comoveram a nossa geração; e que animavam a vizinhança e os passantes no Largo Frei Heitor Pinto. Era bastante apreciado.
Quando estava sozinho dei comigo muitas vezes a ouvir repetidamente a quinta e a nona sinfonias de Beethoven, a Sagração da Primavera e o Pássaro de Fogo de Stravinsky, e as quatro estações de Vivaldi.
Apesar disso ainda me recordo de na Semana Santa (não me lembra ao certo se era toda a semana ou parte dela) nos irritarmos com a RR por só transmitir música clássica. A memória que tenho é a de que se tratava de uma música pesada, enfadonha, “depressiva”.
Lembro-me, pelo contrário, de ficar encantado com o filme A Flauta Mágica, de Mozart, realizado por Ingmar Bergman. E também com uma versão do D. Giovanni que vi na televisão.
2. Aquando da minha conversão (chamo aqui “conversão”, ao meu regresso à Igreja e à prática sacramental, da qual tinha estado afastado uns quatro ou cinco anos), por razões ascéticas, penitenciais, que no meu caso foram indispensáveis para remediar, com a graça de Deus, graves males morais de que padecia, fui paulatinamente aprendendo a jejuar, não só de alimentos mas também de cinema, de que tanto gostava, de televisão e de música.
Mais tarde, depois de dois anos de postulantado no Seminário da Luz, durante o noviciado (para quem não está habituado ao jargão religioso, trocando por miúdos, o noviciado é a recruta dos frades) no Monte Alverne, onde S. Francisco de Assis foi estigmatizado, como um confrade possuísse uma larga colecção de cassetes com os mais variados compositores – Brahms, Mozart, Händel, Schubert, Chopin, Listz , Verdi, Haydn e por aí fora -, pedi-lha de emprestado e foi-me autorizado escutá-las nos meus tempos de leitura espiritual ou de repouso. Fui, então reparando mais detidamente que especialmente alguns compositores tinham a capacidade de transmitir pacificação, alegria e sentimento religioso.
Terá sido essa uma das razões porque sugeri e pedi ao Padre Mestre licença para mudar o modo de acordar, uma vez que era eu o encarregado do mesmo. Até então este era feito através do bater rude e desabrido de tábuas entre si. Eu estranhava muito este modo, não só por estar habituado ao despertar no Seminário da Luz com música mas também porque aquilo me fazia recordar algumas procissões em Abrantes, na Sexta-feira Santa, em que homens cobertos de túnicas e capuzes roxos matraqueavam os nossos ouvidos com essa mesma aspereza, provocando-me tudo grande susto. Introduzi, então, o Aleluia de Händel e outros excertos do Messias. Foi uma novidade e com ela uma alegria no convento, uma vez que a melodia perpassava pelas paredes do noviciado e alcançava a mais remota cela do mais mouco dos frades.
Depois, por insistência de noviços mais jovens, passou-se a outro tipo de harmonias – qualquer coisa como música “para a malta nova, ’tás a ver pá”!
Os dois últimos meses de “recruta” foram no nosso Convento do Varatojo onde fiz os Votos na chamada Profissão Simples. Depois foi vir para Lisboa continuar o curso de Teologia e realizar muito apostolado. Música somente os cânticos religiosos que são de uso nestes tempos. Não que eu os cantasse, coisa a que nunca me atrevi por ser mais desafinado que o bardo dos livros do Astérix – trata-se de uma questão de caridade para com o povo de Deus e, também de salvaguarda da integridade física…
Já sacerdote, quando fui Guardião na fraternidade do Hospital de Jesus, ouvia vezes sem conta cânticos gregorianos. Depois, da segunda vez que estive na nossa fraternidade de Coimbra tinha que vir com frequência a Lisboa. Não poucas vezes convinha vir e voltar no mesmo dia, chegando de madrugada. Como possuísse na altura um mini-disc para registar conferências e debates, que mediante um dispositivo se podia ligar à aparelhagem do carro, pareceu-me oportuno gravar de cd’s músicas que me estimulassem o suficiente para não adormecer. Lembrei-me então da formidável Édith Piaf e do extraordinário Charles Aznavour. Quando de manhã ia para Lisboa escutava algum ou alguns dos três sermões do P. António Vieira que tinham sido editados em cd, no regresso pela noite, ligava então a música.
3. Com o retorno à fraternidade de Setúbal e a seguinte vinda para Lisboa sem grandes viagens habituais a minha estação predilecta era a Antena 2.
Quando o Cardeal Ratzinger, que era de há muito o meu teólogo favorito, foi eleito Papa Bento XVI a sua predilecção por Mozart decidiu-me a aprofundar o pouco que conhecia das suas produções – umas quantas óperas e alguns concertos. Foi assim que comecei a conhecer as suas esplêndidas composições religiosas, permeadas de grande alegria espiritual, e por fim toda a sua larga obra, com a excepção de algumas sinfonias.
Mais tarde foi para mim uma agradabilíssima escutar as inumeráveis e fervorosas cantatas de Bach, as suas belíssimas Missas e as magníficas Paixões de Mateus e João. De facto, dele só conhecia vários concertos, em particular os de Brandenburg e várias obras para órgão com parte das quais, confesso, não simpatizo.
Mas um dia em que estava regressando ao Seminário da Luz fiquei maravilhado com umas harmonias e vozes especialmente penetradas de uma alegria e beleza invulgares. Dei comigo a pensar, eu conheço isto. Chegado a casa não consegui sair do automóvel, preso que estava daquele encanto. Por fim, terminada a sessão o locutor revela as faixas que tinha passado como sendo do Messias de Händel. O Messias! Tinha urgentemente de voltar a ouvir essa oratória com verdadeira atenção. E assim foi. Escutei várias versões. Li e acompanhei com os libretos. Soube que o propósito da obra foi o de evangelizar!, pois as mentes perspicazes já se tinham dado conta do início da descristianização. Eles viram as sementes daninhas dos frutos peçonhentos que hoje provamos com tanto amargor. E ainda não os vimos todos… Eu, é bem de ver, não sou nenhum entendido em música. Mas posso, julgo, adiantar algumas coisas a propósito da evangelização.
4. Para minha grande surpresa dei-me conta que G. F. Händel tem uma série de outras oratórias sobre as Sagradas Escrituras todas elas sublimes em alegria e beleza – Judas Macabeu, Ester, Salomão, Saul, Israel no Egipto, Israel na Babilónia, Jefté, Débora, Sansão, Belshazzar, a Ressurreição (estas são as que conheço) -, para além de outras composições religiosas como a ode a Sata Cecília, Vésperas das carmelitas, cantatas e árias Marianas, e se calhar mais de que não tenho conhecimento.
A música de Händel tem a vantagem de ser facilmente acessível aos jovens e ao público em geral. Dotada de grande simplicidade e leveza entra facilmente no ouvido, mobiliza os sentimentos e as emoções, incute uma enorme alegria, mesmo júbilo, enquanto a mim ainda mais do que Mozart!, chega a ser arrebatadora e tem um poder de atracção espiritual singular. Acresce que a letra das oratórias é em inglês o que permite um acompanhamento fácil possibilitando uma aproximação às Sagradas Escrituras e um interesse renovado pelas mesmas.
Imaginem o que seria um encontro ou mesmo um retiro feito, por exemplo, a partir do Messias fazendo seguir as meditações realizadas a partir dos seus textos com a Música do mesmo.
5. Claro que há muitos mais compositores religiosos que desde Palestrina passando por Pergolesi, Charpentier, Byrd, Tomás Luís de Victoria, Haydn, Verdi, ao Padre Católico Vivaldi, etc., que importará também publicitar pela sua genialidade religiosa. Mas estou em que Händel é a primeira resposta. Vivaldi também ele esplêndido nas suas obras religiosas, seria provavelmente quem eu indicaria a seguir a Händel, passando depois aos outros.
Nuno Serras Pereira
29. 11. 2008
1. Em casa de meus pais não existia o hábito de escutar música. A minha mãe, uma leitora voraz, não a apreciava e o meu pai embora gostasse muito da clássica, por amor do seu amor a ela renunciava. Claro que à medida que fomos crescendo “reivindicamos” o gira-discos e com ele veio a música própria daqueles tempos: o Johny Halliday, a Silvie Vartin, a Françoise Hardy, o Adamo, o Gilbert Becaud, o Charles Aznavour, etc; e apesar de o nosso pai ser deputado à Assembleia Nacional escutávamos também os discos proibidos do Zeca Afonso. Numa telefonia antiga ligávamos para a Renascença e para a Rádio Clube que passava aquilo que então considerávamos a boa música moderna.
Porém, os vizinhos do segundo andar tinham uma excelente aparelhagem sonora e televisão. Para além disso, os três filhos tinham um enorme jeito para a música. O pai, o famoso pintor Tomás Mateus, e a mãe, a Maria José, tratavam-nos como filhos e quando lá íamos sentíamo-nos com o mesmo à vontade, e às vezes maior, do que em nossa própria casa. Para mim eram da família. Como nós não tínhamos televisão (ela só entrou lá em casa andaria eu pelos dezoito, vinte anos, quando queríamos ver algum programa íamos à deles. Uma vez que eu era da mesma idade do mais novo, o Zé Eduardo, passava lá a vida. A primeira coisa que o Zé fazia quando entrávamos na sala era ligar a telefonia para a Antena 2. À conta disso habituei-me a ouvir sinfonias e concertos durante horas. Muitas vezes escutámos também óperas que de quando em vez passavam na televisão. Acresce que quando íamos para o quarto do João e do Zé, o Luís Manuel tinha um quarto só para ele, o Zé agarrava-se à viola e embrenhava-se tocando J. S. Bach, compositor por quem ele tinha uma predilecção particular. Tanto quanto recordo aos quinze anos já dedilhava com primor as pautas desse artista.
Como todos os três irmãos eram exímios em música com alguma frequência improvisavam concertos de câmara. Mais frequentemente, o João e o Zé com mais alguns amigos virtuosos como eles nessa arte. Foi nessa altura que nasceram os famosos, entre os achegados, concertos da casa de banho. De facto, verificando-se, por um lado, que a divisão com melhor acústica era precisamente o banheiro e, por outro, que nos improvisos se podiam introduzir sons imprevisíveis - tais como a descarga do autoclismo, a torneira do lavatório a correr, o chuveiro ligado, o batuque nas bordas da banheira, o desentupidor a funcionar, a repercussão no chão de mármore -, não se duvidou em assentar aí a “sala de gravação” desses musicais. Como eles só sabiam tocar instrumentos menores como violoncelo, violino, viola de arco, alaúde, flauta, etc., a mim cabia a alta tarefa de abrir o chuveiro, etc…
Entretanto, não sabemos porque milagre inesperado, a nossa mãe acedeu a comprar uma aparelhagem musical magnífica. Melhor que a dos vizinhos de cima! Foi a curiosidade e a inveja da vizinhança jovem de, pelo menos, três prédios! Começámos então a ouvir de um modo melhor os Beatles, Bob Dylan, Otis Redding, Janis Joplin, os Doors, Deep Purple, Jetro Tull, The Who, Crosby, Still, Nash and Young, Dan Mclean, Feliciano, James Taylor, Joan Baez, Judy Collins, Leornard Cohen, Santana, Bibi King, (não me esqueci dos Roling Stones, mas não gosto deles) etc.
O meu irmão Luís que tinha um jeito especial para música, coisa rara se não única lá em casa, gostava bastante de cantar Bob Dylan. Frequentemente ia para a varanda, que era num primeiro andar, munido de viola e gaita-de-beiços entoando aquelas baladas que comoveram a nossa geração; e que animavam a vizinhança e os passantes no Largo Frei Heitor Pinto. Era bastante apreciado.
Quando estava sozinho dei comigo muitas vezes a ouvir repetidamente a quinta e a nona sinfonias de Beethoven, a Sagração da Primavera e o Pássaro de Fogo de Stravinsky, e as quatro estações de Vivaldi.
Apesar disso ainda me recordo de na Semana Santa (não me lembra ao certo se era toda a semana ou parte dela) nos irritarmos com a RR por só transmitir música clássica. A memória que tenho é a de que se tratava de uma música pesada, enfadonha, “depressiva”.
Lembro-me, pelo contrário, de ficar encantado com o filme A Flauta Mágica, de Mozart, realizado por Ingmar Bergman. E também com uma versão do D. Giovanni que vi na televisão.
2. Aquando da minha conversão (chamo aqui “conversão”, ao meu regresso à Igreja e à prática sacramental, da qual tinha estado afastado uns quatro ou cinco anos), por razões ascéticas, penitenciais, que no meu caso foram indispensáveis para remediar, com a graça de Deus, graves males morais de que padecia, fui paulatinamente aprendendo a jejuar, não só de alimentos mas também de cinema, de que tanto gostava, de televisão e de música.
Mais tarde, depois de dois anos de postulantado no Seminário da Luz, durante o noviciado (para quem não está habituado ao jargão religioso, trocando por miúdos, o noviciado é a recruta dos frades) no Monte Alverne, onde S. Francisco de Assis foi estigmatizado, como um confrade possuísse uma larga colecção de cassetes com os mais variados compositores – Brahms, Mozart, Händel, Schubert, Chopin, Listz , Verdi, Haydn e por aí fora -, pedi-lha de emprestado e foi-me autorizado escutá-las nos meus tempos de leitura espiritual ou de repouso. Fui, então reparando mais detidamente que especialmente alguns compositores tinham a capacidade de transmitir pacificação, alegria e sentimento religioso.
Terá sido essa uma das razões porque sugeri e pedi ao Padre Mestre licença para mudar o modo de acordar, uma vez que era eu o encarregado do mesmo. Até então este era feito através do bater rude e desabrido de tábuas entre si. Eu estranhava muito este modo, não só por estar habituado ao despertar no Seminário da Luz com música mas também porque aquilo me fazia recordar algumas procissões em Abrantes, na Sexta-feira Santa, em que homens cobertos de túnicas e capuzes roxos matraqueavam os nossos ouvidos com essa mesma aspereza, provocando-me tudo grande susto. Introduzi, então, o Aleluia de Händel e outros excertos do Messias. Foi uma novidade e com ela uma alegria no convento, uma vez que a melodia perpassava pelas paredes do noviciado e alcançava a mais remota cela do mais mouco dos frades.
Depois, por insistência de noviços mais jovens, passou-se a outro tipo de harmonias – qualquer coisa como música “para a malta nova, ’tás a ver pá”!
Os dois últimos meses de “recruta” foram no nosso Convento do Varatojo onde fiz os Votos na chamada Profissão Simples. Depois foi vir para Lisboa continuar o curso de Teologia e realizar muito apostolado. Música somente os cânticos religiosos que são de uso nestes tempos. Não que eu os cantasse, coisa a que nunca me atrevi por ser mais desafinado que o bardo dos livros do Astérix – trata-se de uma questão de caridade para com o povo de Deus e, também de salvaguarda da integridade física…
Já sacerdote, quando fui Guardião na fraternidade do Hospital de Jesus, ouvia vezes sem conta cânticos gregorianos. Depois, da segunda vez que estive na nossa fraternidade de Coimbra tinha que vir com frequência a Lisboa. Não poucas vezes convinha vir e voltar no mesmo dia, chegando de madrugada. Como possuísse na altura um mini-disc para registar conferências e debates, que mediante um dispositivo se podia ligar à aparelhagem do carro, pareceu-me oportuno gravar de cd’s músicas que me estimulassem o suficiente para não adormecer. Lembrei-me então da formidável Édith Piaf e do extraordinário Charles Aznavour. Quando de manhã ia para Lisboa escutava algum ou alguns dos três sermões do P. António Vieira que tinham sido editados em cd, no regresso pela noite, ligava então a música.
3. Com o retorno à fraternidade de Setúbal e a seguinte vinda para Lisboa sem grandes viagens habituais a minha estação predilecta era a Antena 2.
Quando o Cardeal Ratzinger, que era de há muito o meu teólogo favorito, foi eleito Papa Bento XVI a sua predilecção por Mozart decidiu-me a aprofundar o pouco que conhecia das suas produções – umas quantas óperas e alguns concertos. Foi assim que comecei a conhecer as suas esplêndidas composições religiosas, permeadas de grande alegria espiritual, e por fim toda a sua larga obra, com a excepção de algumas sinfonias.
Mais tarde foi para mim uma agradabilíssima escutar as inumeráveis e fervorosas cantatas de Bach, as suas belíssimas Missas e as magníficas Paixões de Mateus e João. De facto, dele só conhecia vários concertos, em particular os de Brandenburg e várias obras para órgão com parte das quais, confesso, não simpatizo.
Mas um dia em que estava regressando ao Seminário da Luz fiquei maravilhado com umas harmonias e vozes especialmente penetradas de uma alegria e beleza invulgares. Dei comigo a pensar, eu conheço isto. Chegado a casa não consegui sair do automóvel, preso que estava daquele encanto. Por fim, terminada a sessão o locutor revela as faixas que tinha passado como sendo do Messias de Händel. O Messias! Tinha urgentemente de voltar a ouvir essa oratória com verdadeira atenção. E assim foi. Escutei várias versões. Li e acompanhei com os libretos. Soube que o propósito da obra foi o de evangelizar!, pois as mentes perspicazes já se tinham dado conta do início da descristianização. Eles viram as sementes daninhas dos frutos peçonhentos que hoje provamos com tanto amargor. E ainda não os vimos todos… Eu, é bem de ver, não sou nenhum entendido em música. Mas posso, julgo, adiantar algumas coisas a propósito da evangelização.
4. Para minha grande surpresa dei-me conta que G. F. Händel tem uma série de outras oratórias sobre as Sagradas Escrituras todas elas sublimes em alegria e beleza – Judas Macabeu, Ester, Salomão, Saul, Israel no Egipto, Israel na Babilónia, Jefté, Débora, Sansão, Belshazzar, a Ressurreição (estas são as que conheço) -, para além de outras composições religiosas como a ode a Sata Cecília, Vésperas das carmelitas, cantatas e árias Marianas, e se calhar mais de que não tenho conhecimento.
A música de Händel tem a vantagem de ser facilmente acessível aos jovens e ao público em geral. Dotada de grande simplicidade e leveza entra facilmente no ouvido, mobiliza os sentimentos e as emoções, incute uma enorme alegria, mesmo júbilo, enquanto a mim ainda mais do que Mozart!, chega a ser arrebatadora e tem um poder de atracção espiritual singular. Acresce que a letra das oratórias é em inglês o que permite um acompanhamento fácil possibilitando uma aproximação às Sagradas Escrituras e um interesse renovado pelas mesmas.
Imaginem o que seria um encontro ou mesmo um retiro feito, por exemplo, a partir do Messias fazendo seguir as meditações realizadas a partir dos seus textos com a Música do mesmo.
5. Claro que há muitos mais compositores religiosos que desde Palestrina passando por Pergolesi, Charpentier, Byrd, Tomás Luís de Victoria, Haydn, Verdi, ao Padre Católico Vivaldi, etc., que importará também publicitar pela sua genialidade religiosa. Mas estou em que Händel é a primeira resposta. Vivaldi também ele esplêndido nas suas obras religiosas, seria provavelmente quem eu indicaria a seguir a Händel, passando depois aos outros.
Nuno Serras Pereira
29. 11. 2008