O filme a Paixão de Cristo, realizado por Mel Gibson, é uma cuidada e profunda contemplação teológica e espiritual do Amor e da Misericórdia de Jesus Cristo, Redentor do Homem. A longa-metragem coloca-nos diante dos olhos e dentro da alma uma Via-sacra. Aquilo que a Igreja, milhões e milhões de católicos, tem rezado e meditado ao longo dos séculos e milénios foi posto em cinema. Os evangelhos escritos pela Igreja, inspirada por Deus, e a Tradição mais antiga e a mais genuína são nos apresentados com uma fidelidade inédita, orante e comovedora. Isto não significa que não exista a possibilidade de representações igualmente fiéis, mas diferentes. Trata-se, porém, de uma constatação que seria injusto calar.
Alguns têm falado da brutalidade deste filme. Creio que há aqui um equívoco que convirá esclarecer. Evidentemente que o sofrimento e a violência estão presentes neste filme, como o estão em muitos outros de um modo, em geral, bem mais cru e absurdo. No entanto, parece que em relação a este somos mais sensíveis por várias razões: 1) Trata-se de uma história verdadeira, que aconteceu realmente; 2) Cristo poderia ter evitado esse destino, de que tinha consciência nítida, e não o fez. Não o fez por puro amor, para nos salvar; 3) Não se defende. Não responde à violência com violência, não insulta, não injúria, cala ou dá testemunho da verdade; 4) Perdoa sempre: a quem o atraiçoa, o maltrata, o julga injustamente, Lhe levanta falsos testemunhos, o nega, o tortura, o crucifica, o mata. Perdoa a todos universalmente; 5) Oferece todo esse sofrimento precisamente por aqueles que Lho infligem, isto é, por nós, para nos redimir. Aqueles que lá estão somos nós, são “instrumento” do nosso pecado; 6) No rosto doloroso da Mãe torna-se mais acessível o sofrimento intenso e acutilante de Seu Divino Filho.
Quando, depois da flagelação e coroação de espinhos, Pilatos mostra Jesus à multidão, dizendo “eis o Homem”, começamos a tomar consciência daquilo que contemplaremos plenamente na cruz: por um lado, a que extremos de malícia, fereza, brutalidade e baixeza pode chegar o Homem, que é capaz não só de tratar assim o seu semelhante, mas um semelhante que é inocente, e não qualquer inocente, mas a Inocência absoluta, o seu próprio Deus; por outro lado, porém, contemplamos a bondade e a misericórdia infinitas do mesmo Deus que para nos salvar se dispôs não só a fazer-se homem, mas a padecer a tortura e a morte: “Cristo Jesus, que é de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz. Por isso é que Deus o exaltou acima de tudo e lhe concedeu o nome que está acima de todos os nomes, para que, ao nome de Jesus, se dobrem todos os joelhos, os dos seres que estão no céu, na terra e nos abismos, e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor para glória de Deus Pai.” (Fil. 2, 6-11); por fim, contemplamos, ainda, no homem Jesus, a grandeza e a sublimidade que o Homem pode alcançar quando vive unido a Deus.
O filme não se detém, de modo nenhum, no maquiavelismo e no sadismo cruel dos que fazem sofrer Jesus. Pelo contrário, essa selvajaria não faz mais do que ressaltar a mansidão, a humildade, o perdão, o excesso de amor de Jesus. Este sublinhar da Pessoa de Jesus, é-nos dado, não só, por todo o Seu comportamento e atitude ao longo do percurso doloroso, mas também pelos curtos, mas muito significativos, episódios da Sua vida que o realizador intercala com a via-sacra: a misericórdia para com a mulher adultera, o lava-pés, o sermão da montanha sobre o amor aos inimigos e, mais importante ainda, a celebração da Última Ceia, como antecipação litúrgico/sacramental do dia seguinte, da crucifixão. É aqui que se revela mais intensa e explicitamente aquilo que já tinha sido anunciado na citação, antes do filme começar, do capítulo 53 do profeta Isaías e na agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras. A Sua entrega de amor, a Sua paixão (que inclui a morte), é sacrificial: “ Isto é o Meu sangue, sangue da Aliança, que vai ser derramado por todos, para remissão dos pecados” (Mt. 26, 28). Sem a Sua Paixão não teria havido redenção: “suportou os nossos pecados no Seu corpo sobre o madeiro da cruz, a fim de que, mortos para o pecado, vivamos para a justiça. Pelas Suas chagas fomos curados.” (1 Ped. 2, 24).
Se a consideração da dor e amargura visíveis que Jesus se dispôs a padecer para nos salvar, quando ainda éramos Seus inimigos, já revela um amor enorme, importa não esquecer que se trata tão somente de um sinal levíssimo de um sofrimento invisível e indizível, que desvela um excesso de amor imenso e uma misericórdia verdadeiramente infinita. É que, como insistia o Cardeal Hans Urs von Balthasar relembrando a doutrina perene e imutável da Igreja, ao abater-se sobre Jesus Cristo o pecado de toda a humanidade anterior, presente e posterior a Ele, sobre Ele desaba todo o sofrimento, consequência dessa mesma iniquidade. Por isso, num certo sentido, é um absurdo comparar o sofrimento de Jesus com o de quaisquer outras pessoas, pois que o sofrimento desses outros, de todos, por Ele foi sofrido.
O profeta Isaías anuncia-o séculos antes: Vimo-lo sem aspecto atraente, sem figura nem beleza, desprezado e abandonado pelos homens, como alguém cheio de dores, habituado ao sofrimento, diante do qual se vira o rosto, menosprezado e desconsiderado. Na verdade, ele tomou sobre si as nossas doenças, carregou as nossas dores. Nós reputávamo-lo ferido por Deus e humilhado. Mas foi ferido por causa dos nossos crimes, esmagado por causa das nossas iniquidades. O castigo que nos salva caiu sobre ele, fomos curados pelas suas chagas. Foi maltratado, mas humilhou-se e não abriu a boca, como um cordeiro que é levado ao matadouro. Sem defesa, nem justiça, levaram-no à força. Foi suprimido da terra dos vivos, mas por causa dos pecados do meu povo é que foi ferido, embora não tenha cometido crime algum, nem praticado qualquer fraude. Mas aprouve ao Senhor esmagá-lo com sofrimento, para que a sua vida fosse um sacrifício de reparação. Por causa dos trabalhos da sua vida verá a luz. O meu servo ficará satisfeito com a experiência que teve. Ele, o justo, justificará a muitos, porque carregou com o crime deles. Por isso, ser-lhe-á dada uma multidão como herança, porque ele próprio entregou a sua vida à morte, e foi contado entre os pecadores, tomando sobre si os pecados de muitos, e sofreu pelos culpados.” (Cf. Is. 53).
Terá o filme sangue a mais? Creio que não. É mesmo provável, segundo estudiosos qualificados, que o sangue fosse mais abundante. O problema quanto a mim é outro: tirámos Cristo da Cruz, “descrucificámo-lo”. Aquilo que Ele, o Omnipotente, não quis fazer - descer da Cruz -, fizemo-lo nós. Tempos terá havido, infelizmente, de Cruz sem Cristo, agora, porém, estamos com um Cristo sem Cruz, só que esse Cristo não é verdadeiro, é um anticristo. Ora Mel Gibson podia responder às nossas críticas com as palavras de S. Paulo: “... Nós pregamos um Messias crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Mas, para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder e sabedoria de Deus.” (1 Cor. 1, 23-24).
As árvores, diz Cristo, conhecem-se pelos seus frutos. Num balanço ainda necessariamente provisório tenho verificado o bem imenso que Deus tem feito através deste filme em tantas almas. Não me refiro tanto aos casos extraordinários como o daquele norte-americano que assassinou a namorada, simulando suicídio tão convincentemente que persuadiu a própria polícia, e ao ver a Paixão se converteu e arrependido se foi entregar às autoridades policiais. Também não falo principalmente de tantos católicos que se têm sentido eficazmente ajudados com essa belíssima meditação que o filme proporciona. Aludo sim a uma grande quantidade de gente que tem andado afastada de Deus ou da Sua Igreja e que foi profundamente tocada por este filme.
Opor o Cristo das parábolas e dos milagres ao Cristo da Paixão é não só desconhecer que se trata do mesmo e único Jesus Cristo como também é ignorar que todas as parábolas e toda a vida de Jesus apontam e encaminham para ali, para a Páscoa.
Termino com duas breves citações:
O Rabi Daniel Lapin: “a Paixão tornar-se-á famoso por ser o mais sério e substantivo filme bíblico jamais feito”.
A prestigiada revista First Things: “O melhor filme de sempre sobre Jesus Cristo”.
Nuno Serras Pereira
29. 03. 2004