“Fora da Igreja não há salvação” (S. Cipriano)
1. Se há heróis da virtude e do amor que não são cristãos, porque devo eu sê-lo? Não serão a fé e a Igreja dispensáveis? Se também eles se salvam, de que me adianta ser católico?
2. Para vivermos precisamos dos sentidos, através dos quais percepcionamos o mundo e procuramos o que nos é necessário à subsistência. Na ausência do olfacto, da vista, da audição, do tacto e do sabor não sobreviveríamos muito tempo. Se uma pessoa carece de um ou de vários destes sentidos, o facto de viver em sociedade compensa-o da sua indigência. Alguém vê ou ouve por ela. Sozinha, tarde ou cedo, pereceria. O corpo é como uma sociedade de células. As células do ouvido não vêem, as da vista não ouvem (ou não têm a disposição adequada para transmitir ao cérebro as impressões recebidas). Mas que surpreendente seria que umas ou outras negassem a existência da visão ou da audição pelo simples facto de não terem, por si sós, acesso a esses mundos de cores ou de sons.
Também um parasita que habite nas entranhas de um animal superior, alimentando-se dos seus sucos nutritivos, poderá negar convictamente a existência das realidades visíveis, sonoras, olfactivas..., ou seja, o mundo exterior (Cf Miguel Unamuno), que proporciona ao animal o alimento que nutrirá as vociferações do nosso irmão parasita contra aquilo que ele apelidará de alienação, delírios da imaginação, alucinações doentias.
É a Igreja uma sociedade ou comunidade de crentes, a qual, sendo dotada de sentidos espirituais, tem acesso à Revelação gratuita de Deus, ao mundo sobrenatural. Enxertados em Cristo, participamos, por virtude do Espírito Santo, da Sua visão, da Sua fé (confiança), do Seu amor. Outros há que cegos e surdos para a Verdade a negam empenhadamente enquanto, quais parasitas, se alimentam das entranhas da Igreja que prepara para eles os “sucos nutritivos” do Amor, da Justiça, da Verdade, da Liberdade, da Paz, etc. Não percebendo a origem das suas virtudes e heroicidades alimentam-se daquilo que negam.
3. Todos sabemos que Deus pode agir para além das fronteiras visíveis da Igreja, suscitando nas consciências a adesão possível, pelo Seu Espírito, a Jesus Cristo.
A todos é pedida aquela atitude contrária à auto-suficiência (hybris) que conhecemos pelo nome de humildade. O humilde, o simples, o pobre em espírito é capaz, com o auxílio da graça, de um movimento de abertura a fim de acolher o dom do amor do Senhor. A este abrir-se chama o Novo Testamento: Fé (Cf J. Ratzinger). E se é verdade que “a fé no seu sentido pleno supõe a totalidade das realidades testemunhadas na Sagrada Escritura”, também é certo que pode existir uma “fé antes da fé” (Y. Congar). Assim, todo aquele que nunca ouviu falar de Cristo e do Seu Evangelho, mas que com Ele, embora “incógnito”, se encontra - no fundo do seu coração ou, ao sair de si mesmo, indo encontro do próximo, do outro com “incógnita de Deus”, como “sacramento” -, correspondendo à voz interior que lhe fala, isto é, ao que da vontade de Deus lhe é possível entrever ou pressentir, salvar-se-á. É o Espírito do Pai e do Filho, o Espírito de Jesus, a graça, que revela a verdade do amor, possibilita a coerência com a verdade conhecida, destrói as portas do cárcere do egoísmo e capacita para amar e servir o outro como irmão
4. Só que Jesus, o único Salvador – “ninguém vai ao Pai senão por Mim” – é o Cristo. Isto significa que Jesus, inteiramente homem e inteiramente Deus, ao ressuscitar agregou a Si novos membros, incorporando no Seu corpo um novo corpo, enxertando no Seu Eu novos eus. A Igreja é o “corpo místico de Cristo”. O “Cristo total” (St. Agostinho) é Ele e nós, de tal maneira que este único Jesus que salva nunca está só; já não é só Ele, já não se pode pensar sozinho (Cf J. Ratzinger), mas é Jesus o Cristo: Ele e a Sua Igreja: “Ubi Christus ibi Ecclesia” (S. Cipriano), onde está Cristo aí está a Sua Igreja.
Ser Igreja, ser cristão, é participar no “ser para” de Jesus, no Seu ser salvador. Deste modo, não somos cristãos para que nos salvemos e os outros se condenem, mas somo-lo para que, pela nossa fé, todos se possam salvar (Cf. J. Ratzinger. O dever de esperar que todos se possam salvar é particularmente sublinhado nas últimas obras de H. U. von Balthasar). A plenitude que nos é dada é para “transbordar” (S. Bernardo) universalmente. Exteriormente através da missionação e do testemunho. Mais misteriosa e invisivelmente pela repercussão que tem em toda a humanidade a nossa fé, a nossa esperança, o nosso amor, o nosso sofrimento, os nossos sacrifícios, a nossa oração, a celebração dos sacramentos, muito em especial a eucaristia, que cooperam activa e “vicariamente” na redenção (Cf H. U. v. Balthasar) transmutando a liberdade alheia em liberdade de tender para Deus (Cf J. Ratzinger). “Uma alma que se eleva eleva o mundo” (E. Leseur).
Deste modo a afirmação: “fora da Igreja não há salvação” significa que esta não é possível sem aquela e não que a salvação não se possa dar para além das “fronteiras visíveis” da Igreja. Por outras palavras: “Habere non potest Deum patrem qui Ecclesiam non habet matrem” (S. Cipriano), não pode ter Deus como Pai quem não tem a Igreja como Mãe.
Poder-se-ia formular isto do seguinte modo: é a Igreja que em Cristo universalmente nos gera para a salvação, ou melhor: é Jesus Cristo que universalmente na Igreja e pela Igreja nos gera para a salvação, ou seja, é o Cristo total, Jesus e a Igreja, que universalmente nos gera para a salvação.
5. S. Cipriano elabora a afirmação “fora da Igreja não há salvação” em polémica com os cristãos que, tendo conhecido a Igreja como o corpo da Verdade (Cristo), depois a abandonaram. Parece que nesse contexto a questão é apresentada, também, de um outro ponto de vista. Não se tratará, então, de saber da possibilidade ou do como da salvação daqueles a quem nunca foi anunciado o Evangelho, mas sim se se pode salvar aquele que tendo conhecido Jesus Cristo na Sua Igreja dela se afasta, consciente e livremente. A resposta, num espaço tão curto, poder-se-á sintetizar assim: afirmar que “fora da Igreja não há salvação” é o mesmo que dizer o que S. Paulo escreveu, “sem fé não se pode agradar a Deus”; isto significa que quem contradiz a verdade conhecida como tal não se pode salvar (Cf Cardeal Dechamps).
Com isto se responde também às perguntas que poderiam surgir derivadas daquelas situações nas quais, sendo Cristo e a Sua Igreja anunciados, por circunstâncias várias e complexas (Cf GS 19), não são reconhecidos como tais.
Nuno Serras Pereira