1. Antes de revelar a imensa maravilha que me extasiou inesperadamente convirá enquadrar o que a seguir se narrará relatando alguns antecedentes.
Há uns anos largos estando eu a distribuir a Sagrada Comunhão numa Missa vespertina na baixa da cidade de Coimbra uma senhora ajoelhou-se para comungar, recebendo o Senhor Ressuscitado, na aparência do pão, na boca. Como sempre fiz em ocasiões semelhantes dei a Sagrada Comunhão respeitando os sinais de reverência e adoração que aquela fiel demonstrava. No final da celebração Eucarística fiquei admirado ao deparar na sacristia com a dita cristã beijando-me a mão com abundantíssimas lágrimas que exprimiam um grandíssimo sentimento de gratidão. Explicou-me então entre soluços que eu era o primeiro padre que tinha aceitado dar-lhe a Comunhão de joelhos, adiantou o que isso representava para ela e esmiuçou a importância que sua mãe tivera na sua preparação para a primeira Comunhão. Soube mais tarde que ela era tida naquele meio eclesial por descompensada, desaparafusada, desequilibrada. Ela poderia ser isso tudo e muito mais mas a verdade é que para mim mostrava mais siso e maior fé do que todos eles juntos. Quantas vezes, Deus se serve daquilo que é louco aos olhos do mundo para revelar a Sua sabedoria! Como é que será possível, pensava eu, que aquilo que tinha sido obrigatório ao longo de mais de mil anos se tornasse de repente proibido aos olhos de algum clero!?
A reforma litúrgica do Papa Paulo VI tem muitos méritos que são geralmente reconhecidos. Porém, sabemos que foi sujeita a muitos e graves abusos e que não sendo perfeita tem merecido correcções e melhoramentos que convirá continuar. Um dos aspectos que sempre me preocupou foi uma perda do sentido da adoração. Afinal como ensinava o Papa João Paulo II a finalidade primeira da Missa é a adoração de Deus. Aquele banquete é Sagrado, não se trata de uma mera refeição ou partilha, mas é o tornar presente, a actualização incruenta do único Sacrifício de Cristo na Cruz, que nos redimiu de uma vez para sempre.
Desde que fui ordenado sacerdote procurei instantemente nas homilias e em retiros incutir no povo de Deus esse sentido de adoração, em particular à Consagração e à Comunhão, e fora da Missa ao Sacrário, sempre segundo as normas litúrgicas vigentes. Afinal nós acreditamos e sabemos que aquele pão e aquele vinho deixam de o ser para se transformarem, se transubstanciarem, no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo Ressuscitado. A majestade Divina, a Glória de Deus, o próprio Deus filho e n’ Ele toda a Trindade, pois onde Ele está Eles aí estão, Se torna verdadeira e realmente presente para Se nos dar em alimento.
Recorri a exemplos, a comparações, à fé, à lógica, à persuasão, aos gestos, aos silêncios, à palavra segredada e à bradada, mas devo confessar que os frutos se os houve não parecem ter sido abundantes. Creio que a par da minha manifesta inépcia haveria também um sentimento de estranheza por parte dos ouvintes, pois para eles eu não seria mais que uma espécie de excêntrico que proclamava dizeres contrários aos que estariam habituados a ouvir.
Por exemplo, propósito do ajoelhar à consagração ou ao Sacrário lembrava Moisés prostrado diante da sarça-ardente, figura do Santíssimo Sacramento ou, pelo Natal e Epifania, os Magos, S. José e a própria Mãe de Deus ajoelhados diante d’ Aquele Menino que é o mesmo agora presente na Eucaristia. Mais adiantava que o padre, pelo sacramento da Ordem, é configurado com Cristo Sumo Sacerdote e Cabeça da Igreja, e quando celebra a Eucaristia fá-lo, in persona christi, na pessoa do mesmo Cristo, por isso na Consagração não diz “isto é o Corpo de Cristo” ou “isto é o Sangue de Cristo” mas sim “isto é o Meu Corpo”, “isto é o Meu Sangue”. E, no entanto, o padre que assim celebra ajoelha enquanto tantos acólitos e leigos estão de pé. Mais acrescentava que o Santo Padre não é somente sucessor de Pedro mas, como ensina o Concílio Vaticano II, vigário de Cristo na Terra e, no entanto, ajoelha à Consagração. Além disso o Papa João Paulo II tinha por costume deitar-se, prostrando-se totalmente no chão, diante de Sacrário, na sua capela particular, passando deste modo longas horas em oração. Lembrava ainda que Jesus Cristo, o Filho de Deus, o próprio Deus Filho, se prostrou por terra no jardim das oliveiras rezando assim durante a Sua agonia. E como se não fora suficiente contava que noutros tempos o diabo era pintado sem joelhos pela sua recusa obstinada em adorar Aquele a cujo nome, como diz S. Paulo na carta aos Filipenses, todo o joelho se dobra no Céu, na Terra e nos abismos.
Claro que também advertia sempre que haveria pessoas que pela idade avançada ou por enfermidade ou deficiência estavam impossibilitadas de o fazer mas que o seu sofrimento era já uma comunhão adorante com a Cruz de Cristo, com Cristo Crucificado, podendo, no entanto, exprimir a sua reverência e adoração através de uma inclinação profunda do busto, ou da cabeça.
Tenho para mim, que algumas coisas, no modo como o actual ritual está em vigor em Portugal, não fazem muito sentido e dificultarão a percepção da importância da oração. Por exemplo, quando há concelebrações é difícil de entender porque é que somente o sacerdote ou bispo ou Papa que preside à Eucaristia ajoelham enquanto os concelebrantes se mantêm em pé – se um se ajoelha porque não o fazem todos?, e se todos não genuflectem porque se ajoelha um? - : o Papa ajoelhado e os presbíteros de pé!; por outro lado, pede-se às pessoas que ajoelhem à Consagração mas não se pede o mesmo ao “Eis o Cordeiro de Deus…”, já para não falar na Sagrada Comunhão. Ainda o sacerdote não comungou e andam os acólitos e os ministros extraordinários da comunhão a cirandar numa agitação febril à volta do altar e do sacrário; depois de o sacerdote comungar, parece que não aconteceu nada, não há um momento de silêncio, de recolhimento, de oração mas pelo contrário há uma aceleração distributiva da Sagrada Comunhão aos ministros extraordinários da mesma que imitam o padre e dirigem-se vertiginosamente à assembleia (os ministros extraordinários da comunhão só se deverão deslocar para o altar de pois do sacerdote ter ido buscar as píxides ao Sacrário); nalgumas Igrejas não se recorre a patenas ou bandejas que aparem os Fragmentos Consagrados ou as Hóstias que podem resvalar e cair por terra; ou então usam-se aos Domingos, mas não nos dias feriais, introduzindo assim uma distinção entre o Senhor presente ao Domingo e o mesmo Deus presente durante à semana mas que se toma por um não se sabe bem quem, mas certamente inferior ao do dia festivo; com uma frequência assustadora se aceitam jovens e crianças a segurar as bandejas que no intervalo entre comungantes ou quando se dirigem ao altar colocam a bandeja verticalmente paralela à perna, atirando assim, distraidamente, ao chão os Sagrados Fragmentos; na Antiguidade a Sagrada Comunhão era dada na mão, mas aquele que comungava colocava a mão direita, previamente lavada, em cima da esquerda, simbolizando assim um trono, significando com esse gesto a fé na Realeza Divina de Jesus Cristo, depois inclinava-se, em jeito de reverência, sobre a palma da mão tomando com a boca o Senhor Sacramentado. Tratava-se, por conseguinte, de um gesto ou ritual sagrado que nada tinha a ver com a refeição profana.
Aquilo a que hoje assistimos é muito diferente. Em primeiro lugar, a Sagrada Hóstia é, segundo as normas em Portugal, recebida na mão esquerda, sendo de seguida levada à boca com os dedos da direita. Geralmente falando não há reparo se ficam Fragmentos Consagrados nos dedos ou na palma da mão. Acontece aliás que grande parte das pessoas já nem este gesto segue senão que como que arrebata com os dedos a Hóstia, da mão do sacerdote, levando-a à boca como quem come batatas fritas ou amendoins.
Não espantará pois que tudo isto redunde numa falta de consciência da Presença Real ou da Divindade d’ Aquele que se torna presente. Isso explicará, entre outras coisas, como se tornou relativamente habitual entre algumas camadas jovens mastigarem pastilha elástica durante a Missa e na altura da Comunhão, colocarem-na entre os dentes e a bochecha, para depois da Comunhão voltarem a mastigá-la com a maior naturalidade. Com alguns idosos passa-se algo de semelhante com rebuçados.
Se tudo isto não é muitíssimo preocupante e de uma enorme gravidade não sei então o que o seja.
Felizmente, devido ao grande empenho do Papa João Paulo II e agora ainda mais do Papa Bento XVI as coisas estão a mudar para melhor. Muito significativo foi o gesto de inteira justiça e grande lucidez de o Santo Padre promover a possibilidade de que em toadas as Dioceses e Paróquias os fiéis que assim o desejem possam celebrar a Missa seguindo o Missal do Bem-aventurado Papa João XXIII. Muito para lastimar é, no entanto, o nítido boicote que alguns Bispos e mesmo Cardeais têm feito a esta iniciativa que o Santo Padre tomou de moto próprio. Depois, o exemplo que o Papa Bento tem dado não só com o cuidado litúrgico nas celebrações a que preside mas também na decisão que tomou de distribuir a Sagrada Comunhão na boca e de joelhos.
2. Dado o enquadramento parece-me agora o momento apropriado para contar a “enorme surpresa”. Fui chamado há dias para celebrar a Santa Missa, numa Igreja sita entra a Azambuja e o Cartaxo, a um grupo de peregrinos que se dirigia de Lisboa a Fátima. Sem que eu tivesse mencionado nada do que aqui desenvolvi fui completamente apanhado de surpresa ao verificar que, provavelmente enquanto comunguei, tinham colocado um genuflexório diante do altar e todos ali se ajoelharam para receber o Senhor em suas bocas. Tratava-se de um grupo relativamente numeroso de católicos que não pertencem a nenhum movimento integrista ou fundamentalista mas que, porventura, inspirados pelo exemplo do Papa resolveram apresentar-se assim adoradores à Santíssima Comunhão. Fez-me lembrar a minha infância, quando ainda era costume todos ajoelharmos para recebermos a Deus na boca, numa atitude de infância espiritual, como o bebé que se amamenta ao seio de sua mãe. Uma vez que não somos puros espíritos mas somos corpos animados ou espíritos incarnados os gestos do corpo revestem-se de uma grandíssima importância na vivência da nossa Fé. Para mim foi não só um momento comovente mas de grande profundidade e significado espiritual. Espero que se possa repetir muitas vezes e que se estenda esta inspiração para glória de Deus e proveito das almas. A propósito, não há muito a Santa Sé esclareceu que nenhum sacerdote pode recusar Sagrada Comunhão a quem a queira receber de joelhos. À honra de Cristo. Amen.
Nuno Serras Pereira
18. 10. 2008