Portugal tem excelentes cronistas e comentadores e algum debate jornalístico vivo e interessante. Dizemos mal da imprensa, por vezes com razão, mas sem dúvida que também existem bons valores nesse campo. No entanto, falta-nos frequentemente a agressividade e contundência que vemos, por exemplo, nos Estados Unidos ou, mesmo por cá, nos textos do Liberalismo e da Primeira República. São raras as penas afiadas e desbragadas e, em geral, dominam os nossos brandos costumes.
Vêm estas considerações a propósito da recente publicação do livro O Triunfo da Vida (Crucifixus, Lisboa, 2006), do padre Nuno Serras Pereira, que marca indiscutivelmente uma novidade no panorama da polémica nacional. O livro é insólito por várias razões. Primeiro por ser escrito por um sacerdote católico, classe que ultimamente tem andado bastante afastada da imprensa. Depois pela forma descomprometida, atrevida e contundente como trata os seus assuntos. Sempre truculento e por vezes violento, este livro parece dever mais a Guerra Junqueiro e Antero de Quental que aos comentadores actuais ou, ainda menos, aos autores sagrados.
O desassombro do autor provém de um facto simples, a denúncia indignada do que ele considera um crime enorme e abominável, e que a sociedade encara com apatia ou cumplicidade: "Um morticínio de seres humanos inocentes e indefesos, através da legalização do aborto provocado (precocemente ou cirurgicamente), da fecundação extracorpórea, da experimentação em embriões, etc., cuja dimensão não tem precedentes na História da Humanidade (p.7)." Horrorizado com esta realidade, o padre Serras Pereira luta com persistência e insistência, contra tudo e contra todos, porque qualquer respeito humano empalidece face à vastidão do martírio.
O autor, que já foi condenado em tribunal por um dos textos aqui incluídos, reúne agora num volume o labor dos últimos anos.
Ver em conjunto estes impressionantes títulos mostra bem a dimensão da campanha pessoal.
É importante dizer que a posição do padre Serras Pereira está longe de ser original. Ele esforça-se a cada passo por mostrar que defende apenas, com rigor e detalhe, aquela que é a atitude da Igreja Católica e que foi a das legislações dos países civilizados até há muito pouco tempo. E também não se limita a lançar golpes brutais contra os adversários.
O livro está cheio de referências eruditas, dados estatísticos, citações científicas e doutrinais. Na parte central a obra quase parece um tratado técnico sobre as questões da vida.
O autor sabe fundamentar bem aquilo que diz. Mas fá-lo com um desassombro, desprendimento e candura que lhe dão um lugar à parte na polémica nacional. Nada do que está escrito destoa do que se lê lá por fora acerca desses temas, mas soa estranho neste pacífico jardim litoral.
Na sua epopeia, com uma naturalidade desarmante e um atrevimento que por vezes arrepia, o livro não recua perante o ataque às instituições mais reputadas, mesmo do seu lado.
Rádio Renascença, Faculdade de Teologia, Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, até (com grande respeito) a Conferência Episcopal são increpadas, sempre com respeito, mas com inegável vigor e contundência, por vezes alguma impertinência.
Em várias páginas dá a sensação que, no meio de uma batalha onde dois exércitos se enfrentam ameaçadoramente, o padre Serras Pereira é o cavaleiro solitário que acusa de cobardia as suas tropas e não tem medo de cavalgar sozinho contra multidões.
O nosso tempo costuma gostar destas vozes solitárias e descomprometidas. Dizemos ser uma sociedade heterodoxa e insolente. Mas quando o alvo é a própria sociedade (ou seja, quando as posições são mesmo heterodoxas e insolentes) as coisas mudam de figura.
A urgência e o dramatismo são as suas razões. A sua atitude, afinal, é a mesma daqueles que, em séculos recuados, desesperavam perante a modorra da sociedade diante de terríveis injustiças como a escravatura, holocausto, pobreza e exploração dos operários.
Hoje, olhando para essas lutas antigas, condenamos os que, por conveniência ou compromisso, silenciavam ou moderavam as suas censuras. São as vozes livres e violentas que admiramos.
Nós temos a prudência e a moderação, o padre Serras tem limpidez e pureza de posição. A sua fixação arrisca-se a ferir susceptibilidades e a injuriar por inflexibilidade. Mas o nosso equilíbrio sensato é bastante incómodo quando consideramos o que está em causa.
João César das Neves
Diário de Notícias - 05 Junho 2006