Ao longo da história não há memória de alguém se ter escandalizado com os qualificativos de tirano cruel e feroz sanguinário atribuídos ao rei Herodes por ele ter mandado passar a fio de espada as crianças de Belém e seus arredores. Nem tão pouco se tem notícia de qualquer acusação de violência verbal a quem tenha recorrido a esses epítetos ou a outros ainda mais fortes. E a razão é simples: os termos usados são adequados à descrição do acto brutal que deu origem ao sucedido. Nos dias de hoje, porém, relativamente a alguns assuntos, repito, exclusivamente em relação a algumas questões, tem-se por falta de elevação e por afronta descabelada o recurso aos termos mais precisos e rigorosos, de que a nossa língua dispõe, para representar o que se passa. Em vez de se chocar com o horror do que é relatado a maioria detém-se melindrada com as palavras que o transmitem. Não considera nem se ofende com o mal existente, mas toma-se de fúrias com quem o aponta ou mostra.
A violência bárbara de Herodes não consistiu somente na matança de inocentes inermes mas também na execração de os arrancar, ainda infantes, aos peitos amorosos de suas mães que, apavoradas, seguramente, se esforçaram com a intrepidez própria dos desesperados por os defender e salvar. Os melhores artistas, ao longo dos séculos, pintaram em telas eloquentíssimas esse terror. O Evangelista São Mateus conclui concisamente: “Cumpriu-se, então o que foi dito pelo profeta Jeremias: Em Ramá ouviu-se uma voz, choro e grandes lamentos: é Raquel a chorar os seus filhos; não quer consolação, porque já não existem!” (Mt 2, 17-18).
Muitos parecem pensar que nos dias de hoje não é possível que existam personagens sinistras como a de Herodes ou a de Hitler, pelo menos no que diz respeito a alguns âmbitos da realidade. Por outro lado, embora aceitem como uma evidência todo o progresso cultural, científico e tecnológico não admitem como possível uma intensificação ou um aprofundamento do maquiavelismo, nem que este se possa refinar nos seus métodos. A vastidão imensa de documentação e de testemunhas que evidencia à saciedade uma “objectiva conjura contra a vida” , para usar a expressão do Papa João Paulo II, é descartada com um leviano encolher de ombros que sobranceiramente ignora a verdade. Actualmente a dificuldade não consiste em arranjar provas, mas sim em torná-las do conhecimento geral através dos grandes meios de difusão, habitualmente acumpliciados na conjura. Quem queira dedicar-se a essa investigação, a cada passo tropeçará em evidências tão grandes, tão variadas, tão constantes, tão esmagadoras, tão confirmadas que a única dificuldade da indagação consistirá na capacidade de abarcar a multiplicidade infindável de dados.
Mais implacável e impiedoso que a matança de Herodes é lograr seduzir pela propaganda que sejam as mães as decisoras da execução à morte de seus próprios filhos; é alcançar que o lugar mais seguro contra agressões à vida do ser humano, o seio materno, se torne, como está estatisticamente comprovado , no mais perigoso de todos.
Qualquer mulher que sabe que está grávida não pode deixar de conhecer que traz um filho no seu seio. Para o abortar, normalmente, inicia um processo mental de desumanização do filho de modo a poder dar o passo. Por isso aconselha-se com os trabalhadores dos abortadouros esperando a resposta que quer ouvir: isso não é bebé nenhum, não passa de um amontoado de células. Mas a verdade é que segundo o testemunho de gente agora convertida que antes trabalhou durante anos nesses centros de morte, quase sempre as primeiras palavras que a mãe que abortou diz, quando na sala de recobro, são: “Ah meu Deus, acabei de matar o meu filho!” e apressam-se em arranjar uma desculpa para desaparecerem dali o mais depressa possível. Num escasso número, que entra em estado de negação, só alguns anos depois é que rebenta o abcesso do sindroma pós aborto; de qualquer modo as repercussões quer numas quer noutras são de tal teor, que há especialistas no tratamento dessas mulheres que a elas se referem como “mulheres abortadas”. De facto, no seguimento do que a tradição judaico cristã sempre ensinou, quem mata (mais precisamente, assassina) mata-se a si, isto é, mata o outro fisicamente e a si espiritualmente, também podemos dizer que quem aborta é abortado. Não só as mães como têm insistido os movimentos pró vida em Portugal, mas também os pais, os médicos e demais envolvidos.
O famoso psicólogo Norte-americano John Powell narra no seu livro sobre o aborto alguns episódios que revelam a consciência que a mulher grávida tem de trazer em si um filho. Certa vez, uma conta-lhe do desejo que tinha de baptizar o filho que ia abortar, antes deste dar o último suspiro; chegou a perguntar à enfermeira do abortadouro se tal seria possível, mas esta mandou-a rispidamente calar não fosse perturbar as grávidas circunstantes. Uma outra, desde que fora confirmada a gravidez deixou de fumar e de beber vinho, até abortar, porque a nicotina e o álcool podiam prejudicar o bebé…
Os Herodes de hoje são mais refinados e não mostram o rosto, actuando por interpostos agentes, dotando-se assim de uma “autoridade” inacessível, de um anonimato que não permite o confronto, nem a acusação, nem a desafronta. Não é possível atirar-lhes à cara o desengano, nem gritar-lhes a indignação ou o puro desespero. A mulher abortada não vozea somente grandes lástimas pelos seus filhos ou filhas decepados, desmembrados, decapitados, queimados, envenenados ou estrangulados; ela terá também que encarar o horror de ter sido a mandante ou a cúmplice dessa injustiça pérfida e sanguinária, de ter sido Herodes de si e de seu filho. A negrura da culpa que carrega é um vácuo de si, uma consciência de ter sido vampirizada. Como contou uma das americanas que a Justice Foundation recentemente trouxe a Portugal, quando, no abortadouro, o filho foi arrebatado de suas entranhas por aspiração, sentiu que com ele tinha sido sugada a sua alma. E uma vez que o clamor interior de lamentações e de dor é largamente superior ao das mães do evangelho os pró vida, e unicamente estes, têm, em regime de voluntariado, dedicado uma enorme parte do seu tempo a acolher, cuidar e tratar destas mães destroçadas pelos seus crimes, para que no Amor Misericordioso recomponham as suas vidas e possam reencontrar a paz.
Nos Estados Unidos da América, rompendo a conspiração do silêncio, são estas mães, agora redimidas, que denunciam o engodo da liberalização do aborto e lhe querem pôr termo. Não se deixam impressionar com os bordões ilusionistas dos julgamentos das mulheres ou mesmo da prisão. Elas entendem muito bem o que M. Schooyans escreveu há anos: não se pode dar ao agressor uma garantia de que a sua vítima não será protegida; sabem, outrossim, que o número de mulheres presas no seu país aumentou exponencialmente desde que o aborto foi liberalizado e asseveram que 60% dos crimes cometidos por essas prisioneiras têm origem no desequilíbrio provocado nas suas vidas pelo aborto provocado.
Também nós sabemos cá em Portugal que quando se dá uma grande queda na consciência social da gravidade de um crime não se procura legalizá-lo ou liberalizá-lo mas sim agravar as penas, como aconteceu recentemente com o código da estrada, para que a consciência adormecida desperte do seu torpor irresponsável. Foi, aliás, assim também que se baniu a escravatura quando grande parte ou mesmo a maioria das pessoas não percebia porque é que ela estava errada.
Amanhã a Igreja celebra em todo o mundo a liturgia dos Santos Inocentes fazendo assim memória das vítimas do rei Herodes, que pretendia matar Jesus Cristo. Já em muitos países, por esse mundo fora, a Igreja reza, nesse dia, em comunhão com todas as crianças vítimas de abortamentos, sabendo-as entregues à Misericórdia divina, por todos os concebidos ainda não nascidos, para que seja reconhecido e respeitado o carácter sagrado e inviolável das suas vidas, para que sejam acolhidos e amados. Também eles, tais como as crianças que foram martirizadas há dois mil anos, são objecto daquele ódio programado que pretende erradicar a presença de Deus no mundo.
Nuno Serras Pereira
27. 12. 2006