1. Naquela noite de Natal a casa da avó, em Abrantes, como de costume, fervilhava de animação com a enchente familiar, do lado paterno. Como não cabíamos todos na sala de jantar, o grupo dos mais novos comia na sala dos armários, sua contígua, assim chamada pelas cantoneiras que ocupavam, do chão ao tecto, todos os ângulos. Ali se guardavam as loiças, as compotas, a marmelada, os folares (pela Páscoa), as boleimas, o arroz doce, as tigeladas, a palha de Abrantes, os sonhos, enfim, as sobremesas próprias de cada época. Esta divisão tinha uma mesa onde habitualmente se tomava o pequeno-almoço e a merenda, nome que a minha avó dava ao que nós impropriamente chamamos lanche; era separada da sala de jantar por duas portas de vidraça, dava para a cozinha por uma porta de madeira maciça e tinha uma janela de guilhotina sobranceira ao pátio da cisterna, coberto por uma latada, então desnuda, mas que no verão se enchia de parras e uvas suculentas e saborosas. Na cozinha via-se ao fundo o fogão a lenha onde as criadas, como então se dizia, preparavam as refeições que recendiam os mais variegados odores. No verão era ali, num armário debaixo da mesa de mármore, que se guardavam as bilhas com água para a manter fresca. A porta para o exterior dava para uma varanda, onde nós, os quatro irmãos mais velhos, nos tempos livres, jogávamos hóquei em patins, mas também onde, quando era preciso, se matavam as galinhas ou os perus que se iam buscar ao galinheiro, no fundo do quintal, ao lado da casa da lenha.
Acabado o jantar de Natal, depois de pedida licença à avó para nos levantarmos, passámos pela sala de jantar, atravessámos a sala encarnada, que só se abria em dias de festa, corremos pelo quarto da avó, subimos ao sótão, onde dormíamos, agachámo-nos de modo a tiramos rapidamente os sapatos ou botas de debaixo das camas, descemos em tropel, passámos pelo quarto da tia Mená, descemos as escadas que iam dar à entrada, guinámos 180 graus e chegados à sala das arcas encaminhámo-nos para a sala da lareira, onde enfileiramos o calçado. Era nesta última que estava montado o presépio, atapetado de abundante musgo, que tínhamos andado a recolher pelas árvores e muros dos campos, coberto por figuras de barro, encantadoramente toscas.
Entretanto, os mais velhos vinham também descendo e iam-se aconchegando na sala da braseira – esta era separada da sala das arcas pela sala do piano e dava para a varanda dos arcos, que se abria sobre o jardim e era subposta, à varanda da cozinha –. Porém, pelas onze, onze e meia da noite os lugares trocavam-se. Irmãos e primos mais novos eram “encerrados” na sala da braseira enquanto os mais velhos dispunham, na sala da lareira, os presentes que o Menino Jesus tinha trazido. Não podíamos ver nada até à hora devida que era só depois da Missa do Galo que se celebrava, então, mesmo à meia-noite. Primeiro badalavam os sinos da vetusta Igreja de S. Vicente, depois, uns cinco ou dez minutos antes tocava a sineta para avisar da iminência da celebração. Como a casa era bem perto do templo, só a este último sinal é que nos agasalhávamos para enfrentarmos o frio da noite e saíamos. A Missa, luminosa e resplandecente de alegria interior, era celebrada com os vagares próprios do Cónego Freitas. Os mais novos estávamos como que divididos entre a suspensão maravilhada da celebração dos mistérios e a pressa do fim numa sofreguidão pelos presentes.
Terminados os ritos e as saudações de boas-festas aos amigos e conhecidos, no adro da Igreja antiga, por debaixo dos arcos botantes, para onde dava a porta lateral que tínhamos por costume usar, deitámos a correr para casa, sendo recebidos pelos latidos alegres do Toy, um fox terrier, e pelo ronronar da Patuda e suas crias, uma gata com que o Toy convivia mansamente, para além da Bigodaças, uma coelha domesticada que partilhava desta amizade inter-espécies.
Na sala das arcas amontoámo-nos todos até que estivessem presentes os pais, os tios e a avó, espreitando avidamente os embrulhos pelas vidraças das portas da casa da lareira. Quando finalmente fomos autorizados a entrar dirigi-me para o meu sapatinho agarrando de pronto o maior e mais vistoso dos embrulhos. Desenlacei a fita, rasguei o papel, deparou-se-me uma caixa de papel pardo e reles que abri movido por uma inquieta curiosidade, logo seguida de um grande assombro que subitamente rebentou numa intempestiva cólera e me fez raivosamente lançar tudo para a lareira que crepitava alegremente: era uma caixa cheia de carvões! Carvões!!! Carvões negros, medonhos, fuliginosos, mais sombrios que a noite mais escura de invernia, mais tristes que um calvário. Ainda para mais numa noite de Natal! Que “piadinha” sem gracinha nenhuma! E logo da Mená que era sempre tão querida e amiga! Parvoíces! Sentei-me a um canto, de trombas, e amuei melancolicamente.
Entretanto, o Luís, meu irmão, afilhado da Mená, descobriu igualmente que o presente oferecido pela madrinha era também uma caixa a abarrotar de carvões. E logo fez ali uma galhofa: Ai que bom! Há tanto tempo que queria carvões e ninguém mos dava. Até que enfim! E com exclamações de regozijo e ares de grande festa começou a partilhar o seu “tesouro”. Um carvão para a avó, outro para o pai, o terceiro para a mãe, etc. E todos agradeciam entre sorrisos e gracejos a preciosidade que recebiam, até que esgotados os carvões o meu irmão descobre uma quantia avultada de dinheiro! O meu ardeu na lareira…
Este episódio da infância ficou-me para sempre como uma lição. Tantas vezes Deus permite “carvões” nas nossas vidas, enfermidades, lutos, desempregos, injustiças, ingratidões, as mais diversas contrariedades, estorvos, sofrimentos e obstáculos; e, no entanto, se nEle soubermos esperar e confiar nunca nos deixa ficar mal, pois, por debaixo dos “carvões” há sempre uma quantia de Graças avultada. Afinal, como diz S. Paulo, Deus concorre em tudo para o bem daqueles que O amam, e Santo Agostinho adianta que embora Deus nunca queira o mal, o permite, mas somente porque pelo Seu poder omnipotente é capaz de tirar do mal um bem maior. Afinal foi isso que aconteceu na Redenção: do mais grave de todos os pecados que o homem podia cometer – a crucifixão e morte de Jesus Cristo – tirou a nossa Salvação. Do maior mal tirou o maior bem – onde abundou o pecado, diz S. Paulo, superabundou a Graça de Deus. Importa pois não se revoltar, desalentar, desistir ou isolar como eu o fiz impedindo-me a mim mesmo, uma vez que deitei tudo a perder, de receber a prenda que a Mená me tinha preparado. O Luís, pelo contrário, encarando a circunstância com bom-humor e confiança, sabendo partilhar as suas dificuldades (os carvões) encontrou o dom escondido e uniu a família numa partilha jucunda.
Pedir com simplicidade que nos ajudem a levar a cruz – os carvões –, faz-nos crescer na humildade e oferece aos outros a possibilidade de amadurecerem na generosidade. Quem pede percebe que sem os outros pouco é, não consegue ser quem é; quem se oferece, saindo de si mesmo para se dar desinteressadamente, aprende o amor que consiste no dom sincero de si mesmo como ensina o Concílio Vaticano II.
O presente que me foi oferecido com tanto amor, ao não ser acolhido, ao ser lançado ao fogo, ateou em mim labaredas infernais, símbolo daquela perdição eterna a que nos podemos condenar por culpa própria e da qual Deus nos quer salvar. Pelo contrário, os carvões compartidos pelo Luís, que cada um magnanimamente tomou para si são sinal da sua deles oblação àquele fogo de amor divino, que tomando-os para Si, os abrasou com tal intensidade e veemência de amor que os confundiu Consigo, transformando-os em brasas incandescentes de caridade e alegria, em chamas de amor, ateando incêndios pentecostais.
2. No dia 11 de Fevereiro quando se soube do resultado do referendo sobre o aborto, quem não se espantou ou mesmo escandalizou daquela alegria estampada nos rostos e do contentamento que reinava na sede dos movimentos de defesa da vida. Manifestações deste teor são habituais em quem ganha votações, não em quem as perde. Acresce que muitas destas pessoas que tinham lutado até à heroicidade não o tinham feito com outra finalidade senão a de proteger os mais fracos e impedir que se institucionalizasse a mais grave e clamorosa das injustiças em Portugal. Não procuravam ganhar nada para si mesmas, mas em tudo se empenhavam pelos outros, inclusive, pelos promotores da anti-cultura da morte, uma vez que a vitória destes constitui para si mesmos uma derrota calamitosa. Combatiam, pois, por todos, contra ninguém, como verdadeiros seguidores dAquele que deu a vida para salvar os seus inimigos.
Uma vez que todos perderam, exceptuando o demónio, eu creio que a circunstância requeria grande circunspecção nem que mais não fosse em nome das numerosíssimas vítimas mortalmente atingidas na alma e no corpo que se adivinhavam. Teria sido adequada uma gravidade no semblante, uma contenção na expressão, um comedimento na atitude. Mas quem pode sossegar a chama/amor, que por sua própria natureza é inquieta? Quem a pode conter sem que a apague? O amor como o fogo ou se alimenta continuamente ou extingue-se. E aquelas brasas fustigadas pelo rijo vendaval da derrota referendária, que as pretendia apagar, ganharam ainda mais chama e atearam um benigníssimo incêndio que não repousará enquanto não puser Portugal inteiro a arder daquele amor que sabe que a última palavra não a tem a morte mas sim a Vida.
3. Quando o referendo foi marcado para o dia de Nossa Senhora de Lurdes procurei considerar atentamente o Seu mistério ali revelado e continuado, e guardei só para mim a suspeita que desta vez o milagre não seria o da vitória pelos votos – afinal, Deus não pode andar continuamente a “tapar os buracos” daquilo que Ele quis fazer connosco e por nós e que negligenciámos ao longo de tantos anos: quando a corrida de fundo já começou há muito e a maioria de nós só parte a toda a pressa quando os outros estão a chegar à meta, é abusar de Deus pedir-lhe que nos transporte pelos ares para a frente do pelotão…
Quem rezar e meditar compreenderá.
Nuno Serras Pereira
29. 05. 2007