terça-feira, 30 de dezembro de 2008

A eutanásia

1. Definição e tipos de eutanásia1

A eutanásia evoca a ideia de uma morte digna e serena. Na linguagem actual o termo eutanásia pode ser utilizado com significados e finalidades muito diferentes, que vão da reivindicação da faculdade de recusar ou suspender uma terapia inútil e onerosa por um paciente terminal à justificação da supressão intencional da vida de uma pessoa que tem uma doença incurável 2.

Como tal, é necessário, antes de mais, precisar o que entende a teologia moral por eutanásia. Esta é «uma acção ou omissão que, por sua natureza, ou nas suas intenções, procura a morte, com o objectivo de eliminar toda a dor. A eutanásia situa-se, então, ao nível das intenções e dos métodos usados» 3. Esta definição de eutanásia encontra-se articulada em duas frases. A primeira frase procura fornecer uma descrição analítica, da qual se entende que a eutanásia é uma escolha deliberada de causar ou antecipar a morte, que pode ser realizada através de acções que por si causam directamente a morte (por exemplo, a administração de um veneno), ou por acções que em outras ocasiões poderiam ter, e de facto têm, uma finalidade terapêutica ou paliativa, mas que, neste caso concreto, são escolhidas conscientemente como meio de causar ou antecipar a morte; em ambos os casos age-se com a motivação de querer colocar um fim ao sofrimento. A segunda frase: «a eutanásia situa-se, então, ao nível das intenções e dos métodos usados», realça o facto de a eutanásia consistir sempre na presença simultânea do propósito deliberado de causar a morte e da acção ou omissão que hic et nunc é a escolhida para a realizar 4. Em qualquer dos casos, o conceito de eutanásia implica a vontade de causar a morte. Trata-se de uma acção ou omissão que aqui e agora tem o objectivo de causar a morte indolor de um ser humano, a fim de lhe evitar o sofrimento, seja a seu pedido, seja pela consideração que à sua vida falta a qualidade mínima para que mereça o qualificativo de digna.

Referida à vontade do paciente distingue-se entre eutanásia voluntária, não voluntária e involuntária. A eutanásia voluntária é pedida pelo próprio doente, que deseja libertar-se do sofrimento ou de um estado de invalidez que julga insuportável. Eutanásia não voluntária é aquela praticada a doentes que não têm a capacidade de exprimir a sua vontade (pessoas em coma, recém-nascidos, doentes mentais). Fala-se, finalmente, de eutanásia involuntária quando esta é realizada contra a vontade do doente.

No que respeita ao estado do doente distingue-se entre eutanásia neonatal, realizada sobre crianças disformes ou incuráveis; terminal, realizada a doentes terminais ou em fase agónica; social ou económica, realizada a doentes tidos como socialmente improdutivos; eugénica, para pessoas com doenças hereditárias ou realizada como um programa de melhoramento da raça.

Quanto ao modo de a realizar, é possível distinguir a eutanásia realizada mediante uma acção que causa a morte ou mediante a omissão de uma cura necessária para a vida. O facto de hoje a morte ser muitas vezes excessivamente medicalizada, e que existam meios técnicos para prolongar precariamente a vida, torna por vezes difícil a distinção entre a eutanásia e a recusa legítima ou suspensão de cuidados inúteis ou desproporcionados, ou seja, a recusa do que hoje é comummente denominado como obstinação terapêutica.

A referida «Declaração sobre a eutanásia» propõe alguns critérios úteis para um juízo, que não são mais que a aplicação ao nosso problema do princípio moral segundo o qual não existe o dever moral de recorrer ou de manter os meios terapêuticos desproporcionados. Estes critérios são quatro:

1) «Na falta de outros remédios, é lícito recorrer, com o consenso do doente, aos meios colocados à disposição pela medicina mais avançada, ainda que estejam ainda num estádio experimental e não estejam isentos de algum risco. Aceitando-o, o doente poderá assim dar um exemplo de generosidade para o bem da humanidade».

2) «É também lícito interromper a aplicação de tais meios, quando os resultados não correspondem à esperança neles depositados. Porém, ao tomar uma tal decisão, é necessário ter em conta a vontade do doente e dos seus familiares, bem como o parecer de médicos verdadeiramente competentes; estes poderão, sem dúvida, julgar melhor que qualquer um se o investimento de meios e de pessoal é desproporcionado em relação aos resultados previsíveis e se as técnicas realizadas impõem ao paciente sofrimentos e mal-estar maiores que os benefícios que delas se possam extrair».

3) «É sempre lícito contentar-se com os meios normais que a medicina pode oferecer. Não se pode, como tal, impor a ninguém a obrigação de recorrer a um tipo de cuidados que, embora já em uso, todavia ainda não esteja isento de perigos ou seja muito oneroso. A sua recusa não equivale ao suicídio: significa a simples aceitação da condição humana ou o desejo de evitar pôr em acção um dispositivo médico desproporcionado aos resultados que se poderiam esperar, ou mesmo a vontade de não impor custos demasiadamente pesados à família ou à sociedade».

4) «Na iminência de uma morte inevitável, não obstante os meios usados, é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que ofereceriam somente um prolongamento precário e penoso da vida, todavia sem interromper os cuidados normais devidos a um doente em casos similares. Assim sendo, o médico não deve ter motivo para se angustiar, como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa em perigo» 5.

Segundo estes critérios, não se pode considerar eutanásia por omissão a recusa de reiterar tratamentos que se demonstraram como inúteis do ponto de vista terapêutico, e que são adoptados como a única finalidade de prolongar artificialmente por algum espaço de tempo uma vida chegada à fase terminal, por doença ou condição extrema de velhice, razões pelas quais toda a terapia não tem outro efeito que causar novos sofrimentos e retirar a necessária serenidade para o momento da passagem. A suspensão dos tratamentos inúteis ou desproporcionados não é eutanásia porque a causa da morte é o curso natural da doença, e não a suspensão dos tratamentos, não se procura a morte, e, finalmente, porque responde ao princípio de aceitação da morte inevitável, através da qual todo o homem deve passar. Deve-se, porém, notar que a recusa da obstinação terapêutica é algo diferente do abandono do doente terminal, ao qual são devidos os cuidados ordinários (alimentação, higiene, cuidado da dor), o acompanhamento humano, psicológico, afectivo e espiritual.

2. A doutrina eclesial sobre a eutanásia

Os ensinamentos eclesiais sobre a eutanásia são relativamente recentes. Durante muitos séculos o problema não se punha, dado que, por um lado, o principio da inviolabilidade da vida humana tornava evidente para todos a ilicitude moral de qualquer forma de eutanásia e, por outro lado, o ensinamento cristão sobre o sentido e o valor do sofrimento era percebido e aceite por todos. A doutrina crista afirma que todo o esforço para aliviar a dor é apreciado como uma obra de misericórdia, e ao mesmo tempo permite que seja dada à dor um sentido redentor e de purificação, que leva a que alguém o possa aceitar como expiação das culpas, sem que por isto deva deixar de usar os meios que a possam evitar.

A primeira intervenção importante do magistério da Igreja em relação directa com a eutanásia é de Pio XII, em resposta às perguntas que lhe foram apresentadas sobre problemas morais que comporta o uso de calmantes que, como efeito secundário, poderiam abreviar a vida 6. Pio XII refere-se ao princípio moral positivo da caridade, indicando a licitude do uso de meios que aliviam a dor, ainda que se possa produzir o efeito secundário não desejado de encurtar a vida do paciente. Aqui também recordou a importância de fazer de tal modo que o doente não venha a ficar num estado de inconsciência que o impeça de deveres de tipo religioso, moral, familiar e social, económicos, etc. Nos últimos trinta anos, o magistério sobre temas relacionados com a eutanásia foi abundante. Não se limitou a fornecer uma valorização moral, mas expôs também a motivação e afrontou os novos problemas que surgiram com o progresso da medicina e a evolução da cultura no mundo ocidental 7.


Já citamos a declaração sobre a eutanásia publicada pela Congregação para a Doutrina da Fé em 1980. Ao afrontar o problema da eutanásia, este documento responde também aos quesitos que se põem frequentemente sobre o uso ou o abandono dos novos tratamentos médicos no campo da reanimação e dos cuidados intensivos. A segunda parte da declaração centra-se na eutanásia, confirmando a sua maldade intrínseca. Os motivos deste juízo fundam-se no mandamento da inviolabilidade da vida humana e sobre a dignidade da pessoa, dos quais nos ocupamos nos capítulos precedentes.

De grande importância é a Encíclica Evangelium Vitae. Contém um importante pronunciamento moral sobre a eutanásia: «Em conformidade com o magistério dos meus predecessores e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal» 8. A avaliação moral negativa da eutanásia é proposta como verdade definitiva e irreformável, garantida pela infalibilidade exercida pelo magistério ordinário universal da Igreja.

3. A reflexão ética

O estudo do princípio da inviolabilidade da vida humana e do suicídio, realizado precedentemente, contém todos os elementos relevantes. Aqui convém talvez acrescentar algumas reflexões sobre a eutanásia que responde a um pedido do próprio doente. Sob o plano objectivo é preciso considerar que também nos casos mais extremos de pessoas abandonadas por todos, quando a própria vida pode parecer mais um peso que uma vantagem para a sociedade, a morte intencional de si é a negação do próprio sujeito moral, imagem do Deus vivo, pela qual se nega a qualquer obrigação ética e, em particular, às obrigações éticas que a vida doente e a aceitação da morte trazem consigo. Com o sujeito moral, é a inteira ordem moral que é objectivamente negada, e isto constitui um mal cuja escolha não pode ser justificada e com o qual não é lícito colaborar.

As tentativas de justificar eticamente a eutanásia correspondem à ideia de que a vida humana não é um bem intrínseco, mas um valor extrínseco, qualquer coisa que vale somente na medida em que é experimentada como boa e digna pela pessoa interessada tendo por base as suas próprias ideias. Fundamento da proibição de matar seria então a faculdade de julgar o valor da própria vida, entendida como parte do direito mais geral à autodeterminação. A proibição de matar não existiria para quem achasse que para ele não vale mais a pena continuar a viver e valorizasse a morte como um bem. A pretensão de poder determinar a própria morte não seria outra coisa que a última consequência do direito de determinar a própria vida.

Do valor intrínseco da vida humana já nos ocupámos. Agora pode-se acrescentar, com Schockenhoff, que a argumentação oferecida para sustentar a eutanásia depende de dois pressupostos: «considerar o desejo de morrer de um moribundo como última expressão da sua autodeterminação moral, e da possibilidade que a realização de tal desejo represente para ele uma ajuda real e, ainda mais, a única ajuda que lhe podemos dar na sua dolorosa situação. Ambos os pressupostos apresentam-se como problemáticos, seja no que respeita à possibilidade de os fundamentar filosoficamente, seja também quando se tem em conta a experiência médica no contacto com os moribundos» 9.

Antes de se exprimir livremente, a consciência do doente sobre o valor da própria vida sofredora deve constituir-se, e só se pode constituir num determinado contexto. A ideia que o homem tem de si depende daquilo que ele é aos olhos dos outros, e a valorização positiva ou negativa da própria situação não pode não ser uma reacção à valorização que ele recebe do juízo dos outros 10. Um contexto familiar e de saúde dominado por um conceito hedonístico ou utilitarista sobre o valor da vida, e como tal favorável à eutanásia a pedido, suscitará o desejo de morrer no doente que é induzido pelo contexto a pensar que o seu sofrimento não é mais do que dor para si e incómodo para os médicos e familiares 11. A experiência clínica mostra que no estado avançado de doença a expressão do desejo de morrer representa frequentemente um pedido velado de não ser abandonado nem sob o plano terapêutico (terapia da dor) nem sob o plano do acompanhamento humano e afectivo.

Nem mesmo parece verdadeira a ideia de que a eutanásia seja a única e última ajuda que pode ser dada a um homem para aliviar o seu sofrimento e para o ajudar a morrer num modo sereno e digno. A eutanásia tem mais o sabor de uma derrota, por parte dos homens e da sociedade, que renuncia à assistência sanitária e humana do moribundo, para a qual a medicina paliativa dispõe hoje de múltiplos e eficazes recursos. Na realidade, a aceitação social da eutanásia comporta a paralisia da investigação e dos investimentos no âmbito da assistência aos moribundos e dos cuidados paliativos. Só quando não existem ou não são oferecidas propostas eficazes de acompanhamento é que a eutanásia pode aparecer ao doente e aos seus parentes como a única e mais eficaz via para chegar a uma morte digna e livre de sofrimentos insuportáveis.

4. As leis sobre a eutanásia

Os defensores da legalização ou despenalização da eutanásia argumentam que uma regulação legal da eutanásia é hoje necessária. Independentemente do modo que cada um tenha como justo para si de gerir a doença e a morte, uma tal regulação serviria ao menos para garantir o direito de uma pessoa a uma morte digna, defendendo-o da obstinação terapêutica ou de um inútil prolongamento artificial da sua vida, e além disso ao direito à autodeterminação e à liberdade de escolha dos pacientes no momento de decidir sobre qual as intervenções ou tratamentos se deve submeter. Permitiria ainda melhorar a relação médico-paciente, a partir do momento em que torna possível um diálogo mais aberto sobre estes problemas, em que o médico é advertido dos sofrimentos dos doentes, que podem alcançar limites insuportáveis. Finalmente, a regulação legal evita os suicídios e oferece à autoridade instrumentos para eliminar práticas clandestinas.

Diante destas argumentações é necessário considerar a argumentação da ‘ladeira escorregadia’ (slippery slope) 12. A argumentação afirma que, uma vez admitida de facto e legalmente para alguns casos-limite, se desliza pela encosta abaixo sem qualquer tipo de controlo e sem a possibilidade de colocar um travão eficaz aos abusos. É verdade que esta argumentação foi criticada como exagerada e catastrófica 13. Mas a análise de quanto está a suceder nos países em que a eutanásia foi legalizada ou despenalizada (Holanda, Austrália, Oregon, Bélgica) demonstra que o fenómeno da ‘ladeira escorregadia’ é real 14. Uma vez admitida a eutanásia, esta é praticada muito além dos casos previstos pela lei, as medidas de prevenção foram ineficazes e as autoridades judiciais e políticas não intervieram contra as infracções. A tendência foi mais a de ampliar a legislação permissiva (emblemático é o caso da Holanda), até chegar à eutanásia efectuada contra a vontade do doente. Justamente escreve Schockenhoff que «as delimitações iniciais e as distinções tornadas sempre mais difíceis, que deviam excluir o abuso no plano lógico conceptual, não conseguem delimitar claramente internamente a ideia de eutanásia, agora que se sentem autorizados a não ter em conta as barreiras exteriores, e a não considerar mais válida a proibição de matar» 15. Parece igualmente justificada a conclusão a que chegou Ortega: a negatividade dos efeitos da admissão da eutanásia é tal que é de exigir do legislador «a limitação do exercício da autodeterminação do doente no que respeita ao presumido direito de decidir como e quando procurar a morte» 16.

A Igreja católica considera que as leis que autorizam ou toleram a eutanásia são contrárias ao bem comum, e como tal devem ser consideradas leis injustas 17. Tal juízo possui uma motivação ética e ético-política mais que suficiente, cujas bases racionais são expressas com muita clareza por E. Schockenhoff quando afirma que as contradições intrínsecas da ideia de eutanásia «fizeram-nos ver que uma liberalização da morte a pedido não alcançaria o objectivo sob um duplo aspecto. A possibilidade da eutanásia expõe o moribundo a coacções sociais que ameaçam novamente a sua liberdade; além disso não representa nem uma real ajuda, nem a única ajuda que lhe podemos prestar na sua dolorosa situação. A isto se acrescenta, enfim, o facto de que o perigo de uma regressão cultural como consequência de uma possibilidade de abuso, bem como a tentação do ambiente social se autodispensar dos deveres mais onerosos, existirem na nossa sociedade num nível maior do que aquele que os defensores da eutanásia querem admitir» 18.

Angel Rodrigues Luño
(2006)
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1 Parte de uma obra em preparação.
2 Cfr. D. Tettamanzi, Eutanásia. L’illusione della buona morte, Piemme, Casale Monferrato 1985; E. Sgreccia, Manuale di bioetica, vol. I, 461-506; E. Schockenhoff, Etica della vita. Un compendio teologico, 313-317,342-353; C. Lega, Manuale di Bioetica e deontologia medica, Giuffrè, Milano 1991, 275-317; D. Lamb, L’ettica alle frontiere della vita. Eutanasia e accanimento terapeutico, Il Mullino, Bolgna 1998. Sobre a morte e a atitude humana em relação a esta cfr. Ph. Ariés, L’uomo e la morte dal Medioevo ad oggi, Laterza, Bari 1979; E. Kubler-Ross, La morte e il morire, Cittadela, Assisi 1982; P. Laín Entralgo, Antropologia medica, Paoline, Cinisello Bálsamo 1988, 365-391.
3 Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração “Jura et Bona” sobre eutanásia, 5-V-1980. Ver também “Evangelium Vitae”, nº 65 e Catecismo da Igreja Católica nº 2277. A definição da Declaração “Jura et Bona” foi pacificamente aceite pela Teologia moral.
4 É preciso notar que a Encíclica Evangelium Vitae introduz uma ligeira variante na definição de eutanásia. Enquanto o texto latino da declaração Jura et bona diz: «Nomine euthanasiae significatur actio vel omissio quae suapte natura vel consílio mentis mortem affert, ut hoc modo omnis dolor removeatur. Euthanasia igitur in voluntatis propósito et procedendi rationibus, quae adhibentur, continetur», Evangelium Vitae diz: «Sub nomine Euthanasiae vero proprioque sensu accipitur actio vel omissio quae suapte natura et consílio mentis mortem affert ut hoc modo omnis dolor removeatur. “Euthanasia igitur in voluntatis propósito et procedendi rationibus, quae adhibentur, continetur” (Jura et Bona, II)». A edição latina do Catecismo da Igreja Católica, de 15 de Agosto de 1997, posterior à Evangelium Vitae, retoma a formulação de “Jura et Bona”: «Sic actio vel omissio quae, ex se vel in intentione, mortem causat et dolorem supprimendum, occisionem constituit dignitati personae humanae et observantiae erga Deum viventem, eius Creatorem, contrariam». A nós parece que a encíclica Evangelium Vitae não quis oferecer uma noção de eutanásia diferente da que foi proposta pela Declaração Jura et Bona, e retomada depois pela edição típica do Catecismo. A encíclica de João Paulo II simplesmente retocou a definição do ponto de vista linguístico, não conceptual e substancial, com o objectivo de delimitar de modo explícito a extensão precisa de um pronunciamento moral de grande valor doutrinal (cfr. Evangelium Vitae nº 65, 4), cuja exacta compreensão requeria não tanto a descrição das diversas modalidades de actuação da eutanásia directa, mas a explicitação das condições de consciência pessoal sob as quais a eutanásia constitui sempre uma culpa moral grave. Como tal, ao afirmar que o pecado da eutanásia consiste numa acção ou omissão que « suapte natura et consílio mentis mortem affert ut hoc modo omnis dolor removeatur», a Encíclica Evangelium Vitae procura afirmar que o pecado da eutanásia requer que a causa da morte, além de ser escolhida deliberadamente, deva ser também o fim querido pelo sujeito agente, por desespero, por razões económicas, por desprezo da vida humana, etc. O texto afirma claramente que na eutanásia se pressupõe que a motivação subjectiva é «ut hoc modo omnis dolor removeatur».
5 Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração “Jura et Bona” sobre a eutanásia, IV.
6 Cfr. Pio XII, Discurso de 24-12-1957: AAS 49(1957) 147.
7 Entre as declarações mais relevantes pode-se citar: Pio XII, Discurso aos participantes no Simpósio Internacional sobre anestesia e pessoa humana, em Discorsi e messaggi di Pio XII, Città del Vaticano 1957, vol. XVIII, 779-799; Paulo VI, Ao Comité especial da ONU, em Insegnamenti di Paolo VI, Città del Vaticano 1974, vol. 12, 460-461; Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração “Jura et Bona” sobre eutanásia, 5-V-1980; Conselho Pontifício COR UNUM, Questioni relative ai malati gravi e ai morienti, 27-VI-1981; Academia Pontifícia para a Vida, Considerazioni ettiche sull’eutanasia, 9-XII-2000; João Paulo II, Aos participantes no 54º curso da Universidade Católica, in Osservatore Romano 6-IX-1984. Diversas conferências episcopais publicaram Cartas pastorais sobre o assunto: Alemanha Federal (1974), Grã Bretanha (1975), Irlanda (1975), França (1976 e 1979), Holanda (1985), Espanha (1993) e Bélgica (2002).
8 Evangelium Vitae, nº 65.
9 E. Schockenhoff, Ettica della vita. Un compendio teologico, 345.
10 Cfr. E. Schockenhoff, 345ss.
11 Interessantes reflexões sobre este ponto em E. Lamb, Down the Slippery Slope: Arguing in Apllied Ethics, Routledge, London 1987, 48-65.
12 Cfr. E. Lamb, Down the Slippery Slope: Arguing in Apllied Ethics, cit.
13 Para uma primeira informação sobre as diversas posições, cfr. C. Ryan, Pulling Up the Runway: the Effect of New Evidence on Euthanasia’s Slippery Slope, «Journal of Medical Ethics» 24 (1998) 341-344; R. G. Frey, El temor a dar un paso hacia el abismo. La euthanasia y el auxilio medico al suicidio, Cambridge University Press, Madrid 2000; J. M. Serrano, Eutanásia y vida dependiente, Ediciones Internacionales Universitárias, Madrid 2000.
14 Veja-se o óptimo artigo de I. Ortega, La “pendiente resbaladiza” en la eutanásia: ilusión o realidad?, «Annales Theologici» 17 (2003) 77-124.
15 E. Schockenhoff, 351.
16 I. Ortega, La “pendiente resbaladiza” en la eutanásia: ilusión o realidad?, cit., p. 121.
17 Cfr. Evangelium Vitae, 72. Veja-se os comentários de L. Ciccone, L’eutanasia e il principio dell’inviolabilità assoluta di ogni vita umana innocente, e di B. Kiely, Il senso della sofferenza e della morte umana, in E. Sgreccia – R. Lucas (edd.), Commento interdisciplinare alla “Evangelium Vitae”, 453-466 e 683-693.
18 E. Schockenhoff, 354.