terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Um político corajoso

“A condição do diálogo é que o valor primário da pessoa, mesmo antes do nascimento, seja sempre reconhecido” (G. La Pira)


A 5 de Novembro de 1977 morreu em Florença Giorgio La Pira, um dos pais da Constituição italiana, “o santo Presidente da Câmara”, cujo processo de canonização está agora a decorrer. Passados 20 anos é bom lembrar o seu empenho frontal contra aquela lei do aborto, por ele definida como “integralmente iníqua”, que veio a ser aprovada, depois da sua morte, a 19 de Maio de 1978,

Em 19.03.1976 escreveu, já gravemente doente, no “L’Osservatore romano”, um longo artigo de que apresentamos uma síntese:

‘Os concebidos devem considerar-se já existentes, já nascidos’. Este princípio que a jurisprudência do tempo de Augusto introduziu operando verdadeiramente uma mutação qualitativa nas estruturas do pensamento social e jurídico, não só romano mas também de toda a civilização humana torna-se, com o cristianismo, uma das bases universais constitutivas do edifício dos direitos invioláveis do homem; o direito à vida! Eis porquê o ‘não’ tão firme fronteira intransitável para todos os homens! ao aborto: porque o aborto é, por definição, um acto supressor da vida de uma pessoa humana; é a morte de um homem! Existem graves carências, grande ‘vazios’, nas estruturas sociais e jurídicas não adequadas (como deveriam ser!) à tutela dos nascituros? Sejam eliminadas com grande urgência e determinação com providências legislativas adequadas: mas nunca com arrebatar o ser, a vida, ao nascituro! Não matar é, para todos, a fronteira intransitável da autêntica, única, comum civilização humana! Ponto firme, tutela e garantia da vida e do ser para os homens de todos os tempos e de todos os povos! Porquê ‘não’, sempre, firmemente, ao aborto? Pela mesma razão pela qual se diz, para tutela da vida, em relação a todos, ‘não’ à morte do homem!

Para além desta razão firmemente ancorada no fundo do ser há outra, relativa ao ‘plano teleológico da história’! Isto é: a história é finalizada. Ora quem são os protagonistas, os executores, os actores deste ‘projecto’ histórico de Deus, de Cristo, que atravessa e investe todos os povos e todos os tempos? São os homens, todos os homens, todos os seres humanos, nascidos e nascituros! Séneca usa uma imagem para indicar esta inevitável unidade de estrutura e unidade de dinamismo de todo o género humano: a da abóbada: ‘a sociedade pode assemelhar-se a uma abóbada que certamente cairia se as pedras, e isso é que lhe dá a solidez, não se sustentassem umas às outras’. Cada ser humano, nascido ou nascituro, é, por isso, uma pedra essencial para a solidez desta única abóbada, e para a celeridade e progresso deste único dinamismo! O aborto subtrai com a extinção do ser do nascituro uma destas pedras essenciais para a sua edificação. Se Dante, Da Vinci, Miguel Ângelo, João Baptista, Einstein, se as figuras mais prestigiosas da santidade, da arte, da política não tivessem nascido, se o plano histórico de Deus teleologia da história! tivesse sido terrivelmente frustrado? O aborto não é somente a morte de um nascituro: ele ‘introduz-se’, corrompendo-o, no plano teleológico da história, da esperança histórica, produzindo desordens não mensuráveis no plano histórico de Deus; fazendo ‘desmoronar’ se fosse possível! a inteira civilização humana, o Corpo místico e o corpo inteiro das nações. Investe e corrompe o plano misterioso das genealogias bíblicas, que é plano de salvação e de civilização para a humanidade.

Outra razão para dizer ‘não’ ao aborto diz respeito à mulher: trata-se da ‘irreparável’, ‘ontológica’ ruptura que se verifica na profundidade da sua psicologia e que ‘torna misteriosa e inevitavelmente presente, na profundidade da psicologia da mãe, a criança morta’: neste abismo da sua profundidade psicológica está aquela ‘imago filii’ que é indelével, salvo um milagre da oração e da graça!, é como uma estrela não luminosa mas ‘invertida’ em trevas, e que impede, sempre, o repouso interior e a paz. O aborto não é um acto libertador da mulher: pelo contrário, constitui-a, para sempre, num certo sentido, numa escravatura interior. Não há reforma social, por mais vasta que seja, mudança de estruturas económicas, políticas, assistenciais, etc. que a possa libertar desta ‘autêntica alienação’ interior que o aborto nela invencivelmente causa!

Transcrevamos, agora, alguns telegramas, a este propósito, enviados por G. La Pira:

1. Ao conselho Florentino de defesa da vida - por ocasião da primeira manifestação na qual La Pira não pode participar porque já estava doente: “Esta grande manifestação pode justamente ser definida ‘manifestação pela tutela do género humano’. De facto ... ela reafirma fortemente o valor primário do homem e portanto o respeito e a defesa de toda a sua vida desde a concepção até à morte porque cada pessoa humana é única e não pode ser destruída. La Pira”. (15.01.1977).

2. Para Andreotti Presidente del Consiglio: “Na Holanda o projecto de lei de liberalização do aborto foi reprovado. O ministro da Justiça Holandês tinha declarado preferir demitir-se a assinar a lei. Este gesto oferece-nos a todos um gesto a imitar. La Pira”. (14.12. 1976).

3. Para Berlinguer - Partido Comunista, Andreotti - Presidente del Consiglio, Ingrao - Presidente Camera Deputati, Fanfani - Presidente del Senato, Piccoli - Presidente gruppo democristiano Camera Deputati, Zaccagnini - Segratario politico Democrazia cristiana: “Entre tantos telegramas que me chegaram transcrevo-te este ... pela acentuação que coloca no destino das gerações o qual seria com a nova proposta de lei desgraçadamente para sempre impedido: ‘ ... dada a sua especial sensibilidade, pedimos-lhe insistentemente que intervenha contra a nova grave proposta de lei do aborto que não respeita nem tutela minimamente a vida e a esperança do mais débil, desconhece o parecer do pai, mesmo quando legítimo, isola a mulher sem a ajudar, mesmo contra a sua família se é menor, favorecendo indiscriminadamente o seu abandono, deixando-a sózinha com os seus mêdos e fragilidades. Obriga a sociedade ... a participar ... nos repetidos infanticídios  contra toda a nossa antiga tradição e a convicção do direito e da medicina desde o direito romano e do juramento de Hipócrates até aos nossos dias. Assinado: Fioretta Mazzei’. Trata-se do próprio destino e ...das gerações vindouras .... Estamos por isso todos empenhados numa acção e responsabilidade comuns que nos torna solidários, para além de qualquer diferença, com as gerações vindouras. A consciência de tal responsabilidade seja a luz orientadora neste debate de importância vital, no qual se afirma a vida ou a morte das novas gerações. La Pira”

4. Para Andreotti, Presidente do Conselho de Ministros: “Volto a recomendar-te vivissimamente que faças o possível para que o aborto em Itália não se torne legal, o verdadeiro crime do século contra a lei de Deus ...La Pira”

5. “Caro Zaccagnini, deves opor-te com todas as tuas forças, com todas as forças dos jovens, para que este ‘crime do século’ não aconteça. Pode-se ficar indiferente a tal matança indiscriminada de inocentes? ... Peço-te de todo o coração que pressiones e se necessário que tomes forte decisões mas que não cedas. ...La Pira.” (13.01.1977).

6. “Caro Berlinguer, ... trata-se do tema terrível das crianças ameaçadas de morte com esta proposta de lei sobre o ‘aborto livre’ ... Pensei em escrever-te, certo de ser compreendido, sobre isto que foi justamente definido como o ‘crime do século’. Estou certo de que nem tu, nem todo o partido comunista querereis participar em decisões de tamanha gravidade que investem todas as gerações futuras! ... La Pira. ...” (12.01.1977).

Nuno Serras Pereira